O Homem-Atrasado

Sono profundo. De repente um pouco de claridade - seus olhos queriam abrir, mas seus corpo queria ficar ali, queria qualquer coisa menos levantar.

Som de carros na rua e aquela fome quase furando o bucho. A sua boa consciência martelava sua preguiça incansável.

Ele então salta da cama, já sabendo do seu atraso habitual.

Corre!

Ele corre direto para o chuveiro, atravessando a sala, onde em uma cadeira pendia o terno meticulosamente preparado na noite anterior.

- Molha, ensaboa, esfrega,esfrega, esfrega , enxágua -

Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiihhhhhhhhhhhhhh - era a maldita chaleira que às vezes parecia falar - ele bate a porta do banheiro, ainda de toalha, sai em debandada para preparar o simpático café de suas manhãs. Preto. Sem frescuras, sem doçuras.

Era inacreditável, mesmo quando acordava horas antes ele sempre dava um jeito de se atrasar. Uma vez ele dormiu terno, pasmem! Dormiu de café da manhã tomado, acordou 2 horas antes e mesmo assim se atrasou. Naquele dia o atraso lhe rendeu uma bronca para se esquecer...

Ninguém o levava a serio, na roda de amigos era sempre motivo de gozação.

Certa vez, sentado já pronto para o trabalho, adiantado uns 40 minutos talvez, começou a assistir TV - os minutos escoavam no relógio mas ele se mantinha estático, petrificado - Não conseguia se mexer - Ao contrário de seus pensamentos que se enveredavam por caminhos imprevisíveis: Amores do passado, livros de poesia (afinal seu grande sonho era ser escritor, viver numa cabana de madeira no meio da floresta e aos pés de uma montanha, como naqueles cartões postais do Canadá. Fumar charutos de segunda categoria e transar com uma mulher que quase chegou a ser bonita) - ele realmente tinha o dom de escapar da realidade através destes pensamentos esquisitos.

Era como se desligasse e quando voltava a si o tempo já tinha não lhe pertencia. Atrasado de novo.

- Droga, hoje tá quente demais!! - reclama pra si mesmo enquanto atravessa o centro de Curitiba a passos olímpicos.

O suor brotava entre os poros de sua pele como formigas operárias ensandecidas saindo para consertar o castelo.

Bom, vamos aproveitar enquanto ele caminha em direção ao ponto de ônibus para apresentar nosso personagem. Ele se chama Diego, tem 21 anos eu acho e era Advogado. Tinha se formado na faculdade de direito em apenas 04 anos, ninguém sabia como e ele também não tocava muito no assunto... Talvez ninguém gostasse dele na faculdade. Uma formatura antecipada solucionaria tudo, talvez se...

Obrigado!! Graças a vocês acabo de perder meu ônibus... agora tenho mais uns 10 minutos. Atraso calculado para 16 minutos e 30 segundos, dá tempo do suor secar e pensar numa boa desculpa.

Bom dia pessoal!!!

- Bom dia. Bom dia. - Os que responderam foram tão ásperos quanto a areia do Atacama.

Silêncio.

tec tec tec tec tac tec tac tec ttatcatctactatectaectatecta (e foram três horas de digitação até a hora do almoço).

Na volta, apenas os dois, Diego e o Dr. Laércio Albuquerque.

Laércio era o advogado mais antigo, mais inteligente e talentoso do escritório. Mas também o mais temido. Taciturno e severo, poucas palavras escapavam daquele túmulo de inteligência.

Mas naquele dia as coisas estavam um tanto quanto diferentes.

- Sabe Diego, a vida é mesmo incrível não acha?

- É eu acho que sim... disse o jovem advogado um pouco surpreso com aquela conversa.

- Uma vez, faz anos, antes de entrar na faculdade de Direito, eu briguei num bar. Por uma garota que se chamava Leona - conhecida como Leona olhos de Zafira - Ninguém conseguia resistir ao seu charme - Enquanto contava, seus olhos contornavam as montanhas do horizonte e sua boca ensaiava alguns sorrisos.

- Ela estava com umas amigas, mas uns caras estavam incomodando-as desde o início da minha terceira cerveja. Sim! Eu não conseguia parar de olhar pra ela.

- Hmm...

- Eram três marmanjos, já conhecidos naquele bar pela encrenca que costumavam causar. - Eu não me aguentei - quando o idiota chamado Mélvin, o baixinho de bigode, agarrou ela pelo pescoço e tentou beijá-la ... - Eu segurei o desgraçado pelo colarinho e rolamos pelo chão.

A taverna era frequentada em sua maioria por lenhadores, lavradores, ladrões e outras pessoas de pouca lei, ou melhor, que costumavam fazer a sua própria lei.

Os dois capachos a priori apenas olharam com espanto, mas depois fui agarrado e jogado como um cão vira-lata de um lado para o outro - a música não parou - tocava Wish You Were Here do Pink e Floyd - uma das minhas prediletas confesso.

- Leona olhos de Zafira não era mulher santa - todos sabiam e ninguém entendeu porque eu a defendi naquela noite.

Diego parou de olhar para o computador e deixou seu trabalho para se entreter mais naquela interessante história. - Conte mais - disse. Seria difícil continuar sem saber o final daquilo.

- Enquanto eu era espancado entre as mesas da Taverna, alguns lenhadores olhavam e faziam piadas, outros caipiras apenas olhavam com certa indiferença, talvez acostumados a ver Mélvin e seus capangas apagarem o facho de um forasteiro atrevido.

- Mas a doce Leona me olhava com os olhos marejados, foi a última coisa de que me lembro... Acordei no hospital três dias depois. Os médicos falaram que foi um milagre eu não colecionar nenhuma sequela.

- Mélvin e seus capangas me deixaram ensanguentado e desacordado num canto onde ficavam os barris de cerveja - disseram que foi Leona quem me levou para o hospital.

- Depois daquele dia, Diego, decidi ser advogado! Pois mesmo as pessoas que não merecem, precisam ser defendidas!

Diego deu risada. - Incrível! você nunca mais viu Leona olhos de Zafira? Mas e Mélvin e seus covardes seguidores? O senhor nunca planejou um acerto de contas?

O severo advogado apenas sorriu, um sorriso diferente. Seus olhos novamente encontraram o cume da Serra do mar.

Lentamente ele levantou da sua cadeira de couro importada e saiu andando em direção à porta.

- Sabe Diego, a vida é como uma demanda judicial- Totalmente imprevsível! - Num movimento veloz ele saca sua caneta Crowford 876 ponta fina e crava no pescoço daquele jovem recém-falecido advogado.

A Precisão foi cirúrgica, Diego não conseguiu nem gritar, enquanto as gotas de sangue manchavam o assoalho, ainda se pode ouvir o doutor descendo as escadas e falando algo banal para a secretaria.

A morte tardou a chegar.

TETCTECTETCTETCETTCETC TTECTECTETECTETCETECTETECTE - O barulho infernal da digitação faz Diego voltar à sala do escritório.

O dr. Laércio estava lá, calado olhando a tela do computador e digitando. Os outros advogados também digitavam incessantemente apenas.

Diego olha o relógio de parede - que já beirava 15h!!! ATRASADOOO DE NOVO! precisava terminar muita coisa ainda hoje.

Dr. Laércio olha para ele e desfere um sorriso amargo como casca de laranja.

Diego desvia o olhar, observa seu celular e depois, com muito cuidada volta a fitar o Dr. Laércio. - Ele estava lá do mesmo jeito - sério, compenetrado, digitando sem parar - talvez aquilo não tivesse acontecido, provavelmente foi só coisa de sua cabeça mesmo...

Então Laércio vira a cadeira e deita os olhos nas montanhas esverdeadas, olhos misteriosos que ora pareciam procurar ora pareciam esconder.

ProjetoProsa
Enviado por ProjetoProsa em 04/05/2016
Reeditado em 20/08/2016
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