O ESCREVINHADOR FILOSOFANTE

Escrevo por impulso.

Há prazer na tarefa, mas também há muito esforço, muita atenção e foco.

O que predomina, porém, é o impulso. Irrefreável, coceirento, inquietante.

Tempos atrás, um vizinho menos simpático quis saber minha profissão, e tasquei, na lata: escritor. Ele me olhou, mediu meu corpo, dos pés à cabeça, como se fosse tecer minha mortalha, e perguntou se eu era famoso. Como, obviamente, respondi que não, ele arrematou a conversa, anunciando, enquanto me dava as costas e se afastava, que então eu não passava de um mero escrevinhador. De longe ainda gritou: - Escrevinhador, e só!

Naquele momento, embora não tivesse reagido ao acinte, fiquei incomodado.

Agora, porém, assumo que sou escrevinhador.

Posso ser um escritor medíocre, mas sou um indefectível escrevinhador.

Simultaneamente, também posso me considerar um filosofante.

Sou contumaz observador de tudo que me rodeia. O vai e vem dos circunstantes, o ciclo natural, pintando os arredores, o bramido variável do marzão, à meia distância, isto, aquilo, aquel’outro e mais um pouco. Olho, penso, olho de novo, faço xixi e sento para escrever. Pode não ser um sistema efetivo e douto de conjeturar, porém atente ao detalhe retro aposto: eu não disse que poderia ser considerado filósofo, mas filosofante. Veja o que diz o Aurélio a respeito:

- ... Que ou quem filosofa, é dado a filosofar. 2. Que ou quem discorre, disparatadamente, considerando-se erudito.

A decir verdad, eu estou mais para a primeira consideração do que para a segunda. Nào me considero erudito, não sou louco para tanto, e também não costumo disparatar além da conta, se é que há uma conta padronal de disparates, como referência.

Sou dado a filosofar, essa é que é a verdade. Sei que o faço informalmente, do meu jeito meio caipira e simplório, sem preocupação com regras, princípios e ABNT. No entanto, ainda há algo de chique em minhas filosofadas, já que sou um peripateta, ou seja, costumo filosofar enquanto caminho, e sei que isso era um costume de Aristóteles. Foi denominado, não sei por quem, de “peripatetismo”. Além disso, tomei ciência de que meus arroubos filosóficos não são pura idiotice, por falta de embasamento, pois podem ser considerados ensaios filosóficos, vez que os ensaios não necessitam de fundamentação, expressando, geralmente, opinião ou talvez simples comentários recorrentes. Tô com tudo e não tô prosa!

Com base em tais premissas (comecei a falar bonito), minhas escrevinhanças se tornam algo meritórias, inclusive porque gosto de contar causos, e os causos, hoje em dia, estão para ser tombados, como patrimônio cultural brasileiro. Assim que, circunstancialmente, passo a ser um notável escrevinhador filosofante (não disparatado), culturalmente protegido e tombado.

E daí? É a pergunta mais provável, que fará o leitor.

Daí que para ler meus mequetrefes, a partir de agora, todo mundo vai ter de usar traje a rigor. Vai ser longo cintilante para as damas, fraque e borboleta para os cavalheiros.

Ontem, bem de manhãzinha, sentei no banco da praça, para lagartear ao primeiro sol da semana, depois de cinco dias de chuva, e fui abordado por dona Nega, uma senhora de seus sessenta e tantos anos, delicada como uma aliá, que queria saber porque dormia na rua. Eu estava de olhos fechados, e com a pancada que ela me deu no ombro, quase caí do banco.

- Não estou dormindo. Estou filosofando.

- Vai filosofá, suando esse sovaco, coisa ruim. Se ficá parado aí vai pegá bicheira.

Nem ouviu o que eu tinha a argumentar. Foi-se embora, esconjurando e gesticulando.

Pensando bem, eu posso até escrevinhar os causos, mas ela é um causo autêntico, vivo e original, o que a torna bem mais importante e preservante que meus rascunhos.

Continuo a ser um razoável escrevinhador filosofante, mas é melhor começar a suar a camisola, limpando a casa, antes que ela volte e me dê outra lambada, porque a primeira ainda dói, e notei que desde aquele “agradável” encontro, meu corpo ficou meio penso.

Se não me ajeitar logo, serei conhecido como o escrevinhador renguinho.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 29/09/2015
Código do texto: T5398812
Classificação de conteúdo: seguro