O PULGÃO FELIZ

Em raras ocasiões trabalhei, regularmente, para alguma empresa, como funcionário. Quase sempre prestei serviço, de forma autônoma, ou administrei negócio próprio (tive vários). Quando, porém, resolvia enveredar pelo caminho do emprego, submetia-me a concurso e tentava carreira no funcionalismo público. Assim trabalhei para o governo federal, estadual e municipal, além de instâncias paralelas, formadas por estatais e autarquias, mas nunca me adaptei à rotina atabalhoada, tortuosa, de politicagens funcionais, que dificultava a capacitação e o crescimento profissional de quem se dispusesse a fazer funcionar a máquina burocrática. Nem sei porque me aventurei por essas estradas.

O resultado sempre foi exoneração, a pedido próprio. Não me aprazia ter um emprego, no qual só poderia cumprir ordens e me resignar a seguir uma cartilha de regras, absurdamente retrógradas e improdutivas. Freqüentemente, durante o tempo em que trabalhava numa repartição ou empresa, costumava desenhar na mente negócios futuros, prevendo ou sentindo que naquele ambiente de trabalho não encontraria satisfação que me permitisse seguir muito adiante. Foi assim, quando estava no arquivo geral de processos da prefeitura de uma grande cidade, há muito tempo.

Em dois galpões, separados por extenso pátio, ficavam dezenas de funcionários, buscando, pesquisando, recuperando ou cadastrando centenas de milhares de processos. Tal repartição se localizava em bairro tranqüilo e periférico, o que permitia que, no horário de almoço, todos se confraternizassem nesse pátio central, se havia sol, ou caminhassem pelas ruas adjacentes, quietas e vazias. Eu gostava de sentar naquele espaço aberto, espairecer e observar a casa que ficava em frente ao portão de entrada, na outra calçada, onde a proprietária, querendo aproveitar o fluxo de pessoas que ali trabalhavam, abriu minúscula quitanda, com gôndolas rústicas, de madeira velha, e balcão feito de caixotes, onde expunha quitutes, dentro de forma encardida e amassada. Admirei sua iniciativa, mas não havia como prosperar com algo tão improvisado e mal estruturado.

Como previ, em poucas semanas a quitanda fechou.

Após alguma chateação pelo ocorrido, me pus a pensar que se aquilo fosse melhor encaminhado, talvez desse certo.

Por que não?

Procurei a mulher para alugar o imóvel e reabrir a quitanda, com uma repaginada radical. Como não tinha todo o dinheiro para a empreita, busquei um parente, com o qual fiz sociedade, e toquei a obra.

Em menos de um mês, abria as portas o PULGÃO FELIZ.

- Como é que é?

O contador achou o nome ridículo. Aliás, todos acharam o mesmo.

Não adiantou explicar que, como o pulgão gostava de verduras tenras e boas, estaria feliz ali, onde só haveria verde do bom e do melhor.

Ninguém gostou ou achou graça na explicação, mas resolvi adotar o nome e mandei fazer a placa. Só então me dei conta de que minha escolha não tinha sido feliz, pois antes de abrir o negócio, praticamente todos que a liam, vinham me questionar porque investir numa agropecuária em lugar de empório ou quitanda.

Ignorei o mal entendido e botei bronca no verduródromo.

Apesar de alguns colegas prestigiarem os quitutes, refrigerantes e doces que eu vendia, a clientela não crescia nem aparecia. Resolvi então investir numa propaganda mais agressiva e pus uma garota na calçada, para oferecer salgados aos passantes, convidando-os a conhecer as instalações.

- Pulgão? Ai credo! Que nojo!

- Você me convida a comer num lugar que tem pulga?

- Sai pra lá com esse salgado! Vai saber se num tem bicho aí.

Achei engraçada a reação das pessoas, mas meu sócio não riu nem um pouco. Quando cheguei, na segunda feira seguinte, para abrir a quitanda, não havia mais quitanda. Ele havia retirado toda a instalação e levado embora. Fui ao seu encontro, questionando a atitude tão drástica, e obtive a seguinte resposta:

- Quanto mais seu pulgão ficava feliz, mais a gente ficava pobre. Antes ele triste do que eu.

- Mas é só uma alegoria!

- Alegoria, pra mim, é fantasia de escola de samba.

- Não podemos entrar num acordo?

- Acorde você, que eu já estou de olho aberto faz tempo.

Não chegamos a um consenso, e o negócio acabou nesse mesmo dia. Quando fui retirar o resto dos pertences e entregar as chaves à proprietária, achei que ela poderia não gostar da interrupção da locação, mas ao invés disso, ficou até aliviada e comentou que aquele negócio de circo de pulgas era anti-higiênico.

Três dias após o fechamento, recebi uma intimação da vigilância sanitária, para que comparecesse à sede, em horário e data determinados, e explicasse a instalação indevida e sem licença, de criadouro de parasitas danosos à saúde.

Até que conseguisse explicar que pato não é ganso, desfazendo tanto mal entendido, perdi tempo, dinheiro e paciência, acabando por solicitar, ao cabo de pouco tempo, minha exoneração. Antes de retirar-me dali, no entanto, ainda tive que ouvir, da mulher que alugou o pequeno salão para montar loja de armarinho, exatamente onde eu perpetrara a insólita aventura comercial, que tivera de fazer a dedetização do local, porque o antigo locatário (eu, é claro) era completamente doido e infestara o lugar com bichos peçonhentos de todo tipo.

Ela não sabia que aquele doido era eu, então tratei de me despedir, cordialmente, e sair dali rapidinho, antes que alguém nos apresentasse.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 20/08/2015
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