184 - TINA – UMA CADELA INESQUECÍVEL...

Num repente pelo portão aberto ele adentrou à nossa casa, porte médio, pelos amarelecidos, um cachorro, mas nem parecia um cachorro, mais parecia um amontoado de ossos articulados, dava até para contar todas as suas costelas tamanho era a sua magreza, imensas cicatrizes pelo corpo, e estas eram denunciadas pela falta de pelos no local, parece que ele fora atropelado para que portasse tamanhas escoriações, foi entrando casa adentro afora, rabo por entre as pernas, uma humildade cativante e dilacerante ao mesmo tempo, ficamos com pena dele, ou melhor, dela, pois ao examiná-lo mais detalhadamente vimos que se tratava de uma cadela!

E ela com aquela tristeza no olhar, aquele olhar pedinte, pedia, ou melhor, implorava para que fosse aceita em nosso convívio, meu pai a princípio foi contra, nós outros suplicamos para que ela fosse adotada, que fizesse parte da nossa vida!

Contra todos, meu Papai se absteve, e para alegria de todos concordou com a adoção, e ele que era contra cachorro em nossa casa, logo logo se mostrou solícito, no dia seguinte providenciou a construção de um pequeno canil, coberto de telhas, no seu interior foi colocado um estrado de madeira para que ela não dormisse no piso frio, também foram colocados vários colchonetes, cobertas, papelões sob o estrado, e outros agasalhos próprios para os cães!

Não sei por que, mas eu só sei passamos a chamá-la de Tina, e a Tina aos poucos foi tomando conta da nossa casa, das nossas vidas, matreira, inteligente, desconfiou que não gostávamos de cachorros na cozinha e na sala de jantar, e ela prontamente evitava estes locais, preferindo salas, quartos, quintal...

E passaram-se os meses, e uma melhora apresentável em seu estado físico se denunciou, depois de tomar algumas vacinas, vermífugos, e vitaminas, ela renasceu, ganhou alguns quilos de peso, tornou-se mais lisa, as costelas que antes estavam à mostra haviam desaparecido, e ela tornou-se mais esperta, mais brincalhona, mas nunca perdeu aquela humildade cativante, nunca deixou de se portar como uma verdadeira dama, dona de uma personalidade marcante, mas aos mesmo tempo submissa e carinhosa!

E o tempo foi passando e ela foi ficando mais fogosa, mais brincalhona, a todos bulia, chamava a atenção para os seus feitos, como buscar uma bola atirada a esmo pelo quintal, pular na piscina, posso dizer com toda a certeza que ela estava vivendo os melhores dias da sua vida, foi quando...

Mesmo que o portão permanecesse aberto, ela no máximo que fazia era espiar a rua, gostava de ver os carros passarem, curiosa a tudo e a todos atentava, mas neste dia um acontecimento inesperado...

Sem que ninguém notasse, ela fugiu, desapareceu, por mais que a procurássemos pelas redondezas não conseguimos encontrá-la, as buscas foram então se esmorecendo, até que definitivamente a demos por perdida, na certa sentiu saudade dos seus velhos camaradas, sentiu saudade da liberdade das ruas, talvez ela não se tenha adaptado com a disciplina em seu novo lar, parece que simplesmente se cansou da nova morada!

Passado algumas semanas eis que surge novamente no portão da nossa casa, nada mais, nada menos, que ela própria, em carne e ossos, estava de volta a nossa querida Tina, parece que passou por dificuldades, na certa passou fome, havia emagrecido, o seu pelo estava um tanto amarrotado e sujo, denotava que havia dormido ao relento, sentiu saudades da nossa casa, e o mais importante é que não perdeu a sua humildade, nem o seu olhar terno e submisso, e ela foi recebida de braços abertos por todos, nós que a julgávamos perdida!

Decorrido algum tempo do seu regresso, notamos que a Tina estava mais barriguda, aquela barriga avantajada parece que a perturbava, e ela parecia envergonhada da arte que fizera, ficou um tanto arredia, mas nada daquilo impedia que víssemos que ela estava grávida, a sua fuga na verdade foi para atender os anseios da carne, com toda certeza a boa alimentação havia recuperado seu antigo vigor sexual, e ela se sentira novamente uma flor em botão pronta para ser fecundada, e para atender a tais vontades ela vagou pelas ruas na procura do seu príncipe encantado, e com toda certeza o encontrou...

Tamanho foi o nosso contentamento pela sua volta, que nem pensamos em repreendê-la ou maltratá-la pela escapada, nem a expulsamos pela barriga saliente, que agora mostrava a todos como que dissesse:

– Agora, eu preciso de maiores cuidados, pois eu estou grávida, preciso de carinho e de uma boa alimentação para que meus filhos nasçam fortes e sadios!

Num amanhecer qualquer, ao sair de casa ouvi francos grunhidos, atentei melhor e ouvi e vi que tais grunhidos estavam saindo do canil, e não foi surpresa alguma ver que a Tina havia dado a cria, agachado, adentrei ao canil, e ela toda orgulhosa me mostrava a sua meia dúzia de filhotes, asseadamente comia os restos da placenta e com todo o carinho do mundo lambia seus rebentos!

Concordamos que os filhotes ficariam com ela até serem desmamados, porque não tínhamos condições de ficar com todos eles! E assim foi, uma vez que os filhotes desmamaram colocamos uma plaqueta em nosso portão que dizia “Estamos doando filhotes de cão de raça”...

Pelo bem dos filhotes não informamos qual era a raça, pois se tratavam de legítimos Vira-latas, e logo em nosso portão se fez um alvoroço de pessoas indagando pelos filhotes, queriam vê-los, e uma vez visto, não tem quem não se engrace por um filhote de cachorro, e assim um a um os filhotes foram dados, um era presente para o filho, outro era presente para esposa, outro era num sei pra quem...

E por fim restou um filhote rabicó, além de rabicó mancava de uma das patas traseiras, com aquela aparência sofrida ele foi sobrando, enjeitado, mas era o xodó da mãe, mas tudo tem o seu dia, finalmente um pai desesperado com a tristeza do seu filho que viu seu cachorrinho ser atropelado e morrer, ele chegou na nossa casa e logo se engraçou com rabicó, tão feliz ficou que queria até pagar pelo filhote, o que não aceitamos, nós é que ficamos agradecidos por tê-lo levado.

Naquela noite ao regressar a nossa casa, após colocar o carro na garagem que ficava ao lado do canil, quando o motor do veículo foi silenciado, pelas frestas de um breve silêncio ouvi um gemido, aquilo era mais que um gemido, era um lamento, era um choro lastimoso, aqueles grunhidos eram de cortar o coração, e todos aqueles sons saiam do canil, curioso adentrei ao mesmo, foi quando encontrei a Tina deitada, com a cabeça entre as pernas dianteiras, até parece mentira, mas escorriam lágrimas dos seus olhos, ela chorava copiosamente sentindo a falta de seus filhos, aquela cena me marcou pra sempre, marcou mais que um ferro em brasa, ainda hoje eu carrego aqui dentro do meu peito aqueles momentos tristes vividos ao seu lado, a principio não sabia como proceder diante daquele fato inusitado, comovido abracei a Tina como se abraça em ente querido, abracei e apertei-a contra o meu peito com tamanha ternura, com tamanho respeito, que ela agradecida lambia o meu rosto, minhas mãos, e assim permanecemos abraçados por um longo tempo, tempo suficiente para que eu derramasse as minhas lágrimas, meu coração não resistiu a meiguice daquele momento, por fim, eu expliquei pra ela que os seus filhotes não poderiam permanecer ao seu lado, que era necessário doá-los, pior seria jogá-los pelas ruas, abandoná-los pelas estradas desertas, ou chegar ao extremo da crueldade matando-os, mas que tivemos todo cuidado de doá-los para pessoas que iriam cuidar deles com toda a ternura e dedicação!

Ela ouvia calada as minhas explicações, se entendia eu não sei, parece que entendia, parece que me compreendia, mas que nunca aceitaria de bom grado aquele acontecimento, não tem uma boa mãe que aceita que seus filhos lhe sejam tirados à força, apesar dos pesares ela voltou a sorrir...

Latiu, não mais um latido de tristeza, mas um latido misturado com lágrimas parecendo demonstrar compreensão...

E a Tina compreendeu até aquilo que não dissemos pra ela, nunca mais fugiu de casa, apesar do portão das vezes ficar aberto, no máximo que ela fazia era chegar até a calçada cheirar a tudo e a todos e voltava correndo para dentro da casa...

Engraçado, como tempo passa rápido, passou rápido demais para todos nós, principalmente para a Tina, que se envelheceu, adquiriu doenças e mais doenças, por fim uma hemorragia ceifou a sua vida!

Com todo carinho do mundo coloquei seu corpo na caminhonete, e ela não foi atirada numa barranqueira de um estradão qualquer, em nosso sítio, na sombra de uma imensa figueira, cavei uma cova e ali guardei o corpo da nossa inesquecível Tina, e para perpetuar por décadas afora lembranças daquela cadela inigualável, na cabeceira da sua cova cravei uma lasca de aroeira, e nela estava gravado em alto-relevo a palavra Tina!

Hoje, passado muitos anos da sua morte, a lasca de aroeira ainda esta cravada na cabeceira da sua sepultura, o tempo a ressequiu, a lasca se rachou, mas ainda da para ver o nome dela, Tina, uma cadela inesquecível!

Sentado na sombra desta figueira, fecho os olhos, clamo pela Tina, e nos meus sonhos lá vem ela pela estrada a toda velocidade, orelhas para traz, coladas na cabeça, boca aberta, língua ao vento, e ela salta sobre mim, ela esta toda feliz, sem perder aquela humildade cativante, lambe as minhas mãos, lambe o meu rosto, vivo momentos de felicidade...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 24/05/2014
Reeditado em 14/06/2014
Código do texto: T4818530
Classificação de conteúdo: seguro