Sostô Zé, e eu?

Pois se foi sonho de verdade, prefiro estar sonhando até agora, pense. Pra um velho pescador que nem eu, num rio que não tem mais nem piaba, o que cai na rede é peixe, e que peixe!

Ainda era de madrugada e o galo nem tinha cantado ainda, meti os pés da cama, tirei o pijama, pus roupa limpa, passei na cozinha, pus no bornó a farinha e a rapadura, peguei as tralhas todas e quando toquei na maçaneta da porta pra tirar a bicicleta, o rasgo da veia no ar:

_ Já vai Zé? Caísse da cama foi? Pois antes de ir passe pra cá o dinheiro do gás que acabou ontem mesmo na hora que tava assando seu cambão. Sem gás num posso cozinhar _ Terminou de falar abrindo a boca de um lado a outro e eu a pensar cá com meus botões: é por isso que mulher feia e jumento só quem sente falta é o dono, pense!

A danada do jeito que levantou apareceu na porta: o cabelo parecia um matagal seco, o rosto o chão do sertão na seca, na boca somente o céu e a língua, além de um sinal cabeludo na ponta do queixo... De onde estava sapequei as seguintes palavras:

_ Eu vou te dar é lenha pra ver se você... E quando ainda tava falando, uma mosca entra na minha boca, ela se abre todinha num riso que até fiquei assustado, interrompido pela mosca enquanto a veia dizia:

_ Dessa lenha que já não pega fogo, faz tempo, eu mesmo não faço questão, até porque meu fogão a lenha já está aposentado não tem mais nem graça, e deixe de enrolação que Mimoso da budega já disse que não despacha fiado pra você porque você é velho, pescador mentiroso e veaco e não pagou...

Deixei foi ela falando sozinha, bati a porta e escorreguei pelas ruas rumo a maior e melhor pescaria de minha vida. Eu tinha sonhado e meus sonhos nunca mentiam, neles tinha peixe, mais tanto peixe de virar lama. Saí assim pedalando pensando com meus anzóis sobre a miséria dessa nossa vida de meu Deus: Uns com tanto e outros com tão pouco. Daqui a pouco o sol nasce e é para todos do mesmo jeito, ou não? Não sei se é, só sei que penso desse jeito... De pensamento em pensamento a lembrança do sonho de agora a pouco enquanto eu dormia e a chegava no lugar da pescaria. Nada nem ninguém por aqui. O rio era todo meu. Peguei meu fumo, queimei meu brejeiro todinho, entrei na canoa, eu, Deus e meu velho três maio...

Aos poucos ia me afastando da beira do rio e já um pouco longe, joguei uma vez, puxei, nada! Dei mais algumas braçadas, outro lance, um peso diferente e muitos plásticos e outros lixos inventados pelo bicho homem. Limpei a rede, terminei cansado e uma vontade de voltar, uma dor de barriga que não me deixava fazer aquilo ali no meio da água. O que saía de mim não poderia servir de alimento para os peixes... Molhei o rosto, esperei a vontade se acalmar e pus a rede de volta às águas. E o sonho? E os peixes? Tentei puxar a rede e nada dela vir, estava meio pesada. Insisti, ela vinha devagar, parecia que tinha crescido. Puxei, puxei e só sei que meus braços não conseguiam mais puxar a rede de tão pesada que ficou, aí pensei que tivesse encontrado o Titanic bem ali naquele rio. Só podia ser um milagre, só podia ter sido a multiplicação dos peixes e eu sozinho ali sem nenhum vivente que me ajudasse. Sapequei uma prece a Nossa Senhora dos pescadores aflitos que de repente senti que o meu corpo se transformava. Meu tamanho de touco de amarrar cachorro se multiplicava, virei um gigante de braços largos e fortes, uma cabeleira de cabelo bom e bonito, liso, loiro e um rosto afiado, pois quando me vi espelhado na água do rio até me assustei: _ Será o Narciso, meu irmão que veio do além em meu socorro? Socorro, mãe! Socorro minha mãe me ajude que o bagaço vai descer! Pois bem, fui puxando, puxando a rede e como que nem sei o quê, a água do rio foi se abrindo, foi se abrindo e de dentro da rede, uma sereia, nossa, mas que sereia eu tinha pescado. Uma bela moça de cabelos compridos loiros, de olhos cor de céu, pele branquinha e lábios rosados... Quando a boca se abria em canto suave, o branco dos dentes parecia leite tirado naquela hora, fiquei ali parado pensando ser um sonho dentro de outro sonho. E como se fosse um herói de verdade, fui trazendo ela para dentro da canoa, que parecia um barco, ora era navio e eu não sabia mais de nada, de nada, se era capitão, mestre ou pescador, só sei que era desse jeito, aquele imenso peixão e diante dela eu só conseguia dizer me belisca, me belisca vai pra ver se estou sonhando e dentro do sonho eu já conseguia sentir o gosto dos lábios dela nos meus, quando que não, uma dor forte bem no meu traseiro me fazia voltar a realidade. A veia de pé do meu lado mandou ver no beliscão e dizia:

_ Esse é para apagar todos os seus pecados, o outro para criar juízo, o antes desse...!

De dor eu logo despertei, saindo do sonho e despencando na realidade. Seu Mimoso bodegueiro ali na minha frente, cabra feio e fedorento, de olho trocado e faltando um dente de frente, vestido de camisa cor que doía lá dentro, cobrando a conta do mês passado _ Será que ele estava escondido dentro do camiseiro?! Gritei como nunca tinha gritado na vida, como um desesperado. A sereia se foi, era apenas um sonho de pescador. Ficou apenas as dores dos beliscões no traseiro, a veia de cão nos couros a me esculhambar e o bodegueiro a querer saldar a dívida atrasada:

_ Devo, não nego. Pago quando puder, agora, pelo caminho que veio, vá de marcha ré como pagamento pela desfeita de ter me despertado na hora mais esperada de se dar bem. E não me venha com sermão nem xingamento que hoje estou de ressaca, o rio não estava pra peixe, mas estava pra sorte e outra como aquela sei que nunca mais vou ter porque dor de barriga não se tem duas vezes no mesmo canto, pelo mesmo motivo não... Sereia como aquela só nos contos de fada e quem quiser que ache graça da desgraça dos outros porque tudo isso me deu uma baita de uma preguiça. Vou voltar a dormir que é pra ver se no sonho ela volta, toda cheia de ouro e me leve de uma vez pra viver do lado dela como seu grande tesouro.

_ Sostô Zé, e eu?