O DEVOTO DE SANTO ANTÔNIO DE CATEGERÓ

Severino, o Bio, para os mais íntimos já estava morando em Ilhéus há uns três anos. Viera do interior, de uma currutela conhecida como Banco Central. Estava com vinte anos e não alentava nenhuma possibilidade de vencer, na vida, trabalhando em uma fazenda de cacau onde passara os anos colhendo, cortando, secando e ensacando os grãos da planta do chocolate. Era uma monotonia ferrada e não via a hora de deixar toda aquela trabalheira para trás e se mandar para a cidade grande.

Ouvira dizer que para as bandas do Sul ou do Centro Oeste poderia ter melhores condições de trabalho e de vida. Aí, poderia até arrumar uma mulher de amigação e juntar os tarecos...

Não deu outra, no primeiro berro que ouviu do patrão, um fazendeiro manhoso e ruim como a necessidade, passou a mão na trouxa, pegou o primeiro caminhão para Ilhéus e foi procurar o que fazer. Ao passar por uma obra que iniciava as fundações, procurou o mestre e indagou se não poderia lhe arranjar alguma coisa, um trabalho.

Como não estava acostumado a nada além de cuidar das coisas da roça deu-se por satisfeito ao ser admitido como “auxiliar de serviços gerais”, com um salário mínimo por mês e a promessa de “carteira assinada”. Para isso precisaria providenciar os documentos necessários e apresentar-se pronto para o trabalho. Assim começou, Bio, a caminhada em direção à vida nova.

Cheio de esperança, não enjeitava serviço. O mestre e os pedreiros mais experientes o atarefavam de trabalho virando concreto, carregando massa, manejando areia, brita e os demais ingredientes comuns a esse tipo de serviço braçal.

À noite, na enxerga do barracão, agradecia a Santo Antonio de Categeró e não pregava o olho sem mentalizar a oração que aprendera com uma velha beata, paulista, que conhecera na Bahia: “Oh! Santo Antonio de Categeró! Iluminai os meus passos a fim de que, onde quer que eu vá, não encontre empecilhos e, guiado pela vossa luz, me desvie de todas as maldades”.

Ficava feliz por ter um trabalho, um lugarzinho para dormir e uma comidinha que, embora não fosse lá essas coisas, dava para manter a barriga cheia e o corpo disposto para a dureza do trabalho na obra. Dali a algum tempo, queria ver o tamanho do prédio que ajudara a construir com aquele par de braços acostumados com a enxada e a vida dura do pantio do cacau.

Nessa luta, Bio foi levando os seus dias e, no final do mês, já não se agüentava de emoção imaginando a hora em que iria receber, do engenheiro chefe, o seu primeiro ordenado. Um salário mínimo, com os descontos, dentro de um envelope com o nome dele escrito em letras graúdas.

Na sua primeira noite no barracão da obra, onde dormia com os demais operários solteiros, ao fazer sua oração, prometeu a Santo Antônio de Categeró que, em paga da proteção, colocaria uma esmola de “vinte real” na caixinha de ofertas da igreja do bairro.

Zeloso do seu emprego e refreado nos gastos, Bio foi juntando um dinheirinho e até abrira uma Conta Poupança numa agência próxima, do Banco do Brasil. Sentia-se vitorioso e nem lembrava mais daquela gente lá da fazenda de Banco Central, aquela currutela que não atava nem desatava...

Como era filho de mulher-dama, fora criado no “beco” até que uma doença venérea fulminante levou sua mãe para a sepultura. Nunca soube quem era o pai e Neneca nem tinha idéia a respeito. Foram tantos que sequer arriscava um nome.

A única lembrança era a Zefa, uma negrinha rechonchuda que, bem cedo, andara descobrindo as coisas e costumava enroscar as pernas com ele em meio às árvores carregadas de frutos, na floresta de cacau. Aquilo era bom de mais e, mais ainda, porque era escondido. O pai dela nunca desconfiou de nada e ele se regozijava por isso.

Três anos se passaram e a obra chegou ao seu final. Um belo prédio de seis andares, com elevador e tudo. Ficou prontinho! Uma beleza! O engenheiro chamou o pessoal, pagou-lhes o último salário e prometeu nova convocação assim que tivesse um novo projeto aprovado. Nova construção, novo trabalho para a equipe.

Bio resolveu não esperar mais. Seu tempo de Ilhéus estava terminado ali, na conclusão do edifício. Juntou seus trapos, pegou o dinheiro da Conta Poupança e tomou o rumo de Brasília. Novos tempos, nova vida! Dizia para si mesmo.

Mal desembarcou na Rodoviária dedicou alguns momentos ao desfrute do êxtase, ao contemplar os monumentos de concreto e arte espalhados pelo seu campo de visão. Sentiu o peito cheio de um novo ar e a alma totalmente inundada de esperança. É aqui que serei alguém na vida! Pensava...

Um dos operários com os quais trabalhava, na obra de Ilhéus, havia conseguido um emprego de ajudante de armador em uma construção grande, na cidade de Sobradinho. Fora esse o incentivador para que Bio deixasse Ilhéus e viesse para a Capital. Não demorou muito e o colega o localizara entre a pequena multidão que transformava o lugar em verdadeiro formigueiro humano.

Abraços, cumprimentos, troca de gentilezas e os dois embarcaram em um ônibus para Sobradinho. Rumaram em direção ao novo trabalho de Bio onde, após as apresentações de praxe, as formalidades foram cumpridas. O rapaz já estava empregado. Teria um salário, três refeições, uma cama para dormir e um armário de aço para guardar seus pertences. Aqui, seria ajudante de pedreiro, com um salário e mais gratificações por produtividade e horas extras. Bio estava fora de si de tão contente. Finalmente, estava vencendo na vida!

Uma semana já havia passado e o sábado seria livre. Era feriado local e ninguém iria trabalhar. Bio aproveitou para conhecer a cidade e familiarizar-se com as ruas, lojas e pontos mais importantes.

Quando deu por si estava andando pela avenida principal, lugar em que se concentravam várias agências revendedoras de automóveis usados. Repentinamente, uma espécie de vírus atacou o rapaz. Num descuido da razão, viu-se ao volante de um dos carros à venda e, a partir daquele momento, jurou que a primeira coisa de valor que iria adquirir, seria um carro. Isso mesmo! Um carro!

Mas, centrado, Bio entendeu que aqueles que estavam expostos, não seriam adequados para o seu padrão, mesmo considerando o dinheiro que possuía na Conta Poupança. De qualquer modo, havia prometido a si mesmo, que compraria um carro financiado desde que não ficasse comprometido com uma dívida exagerada.

Continuando a caminhada, bem lá no finalzinho da avenida da Quadra Oito, encontrou uns carros expostos à venda. Em um deles havia uma inscrição no para-brisa: “VENDO – Escort 85 – Dois mil real em déis veis”.

Bio não resistiu à oferta. O desejo foi muito mais forte do que a razão. Não deu outra! Conversa vai, conversa vem, o negócio foi fechado e Bio saiu com os documentos na mão. Aprendera a dirigir, na roça, um velho trator “Agrale”, com motor diesel que não andava mais rápido do que vinte Km/h. Agora estava sentado ao volante de um “Escort 85”. O que iriam dizer, lá na obra? E a turma na fazenda? Venceu ou não venceu na vida? Saiu todo prosa com o seu Escort rateando... Precisava de uns ajustes no distribuidor... Ia leva-lo a um mecânico, lá no outro lado da BR-020.

De repente, os transeuntes são despertos pelo alarido das sirenes. Carros dos Bombeiros cruzavam as avenidas do Centro em direção à saída de Sobradinho, bem próximo ao "Supermercado Comper". Foram chamados para atender a um grave acidente. Uma carreta conduzindo algumas toneladas de grãos de cacau esbagaçou um Escort 85 que dera uma engasgada, sem chance de que o motorista pudesse escapar do choque.

Os restos do motorista não tinham a quem ser entregues. Nem parentes, nem amigos, nada... Ninguém... No peito do defunto, uma cordinha com um breve e a oração a Santo Antonio de Categeró. Na placa do caminhão, além dos quatro números havia a inscrição: “Ilhéus – BA”.

Amelius
Enviado por Amelius em 11/06/2013
Reeditado em 21/01/2020
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