PEIXE QUE NÃO VOA NÃO CAI EM ARAPUCA

Observando, hoje, como se desenvolve a meninice lembro, com carinho, dos meus tempos de menino e de como foi boa a minha infância. Minha família acho que, por algum ranço da sociedade patriarcal, era numerosa e a casa em que habitávamos abrigava um montão de gente.

Minha rua era composta de casas grandes como a nossa e também abrigava boa quantidade de pessoas ligadas pelos laços de sangue e de afetividade.

Assim, minha infância foi sendo cultivada num ambiente de boas relações entre os familiares e havia um sentimento consciente do cumprimento de normas e disciplina. Cada qual sabia dos seus deveres e que do cumprimento deles resultava a harmonia coletiva da família.

Minha rua, na Tijuca, vivia alegre pela movimentação da garotada que, nas calçadas largas, se espalhava em todo o tipo de brincadeira natural à meninada da época. Os meninos jogavam bola de gude, futebol, chicote queimado e as meninas cuidavam de exibir as bonecas com seus carrrinhos de bobê e davam asas à tagarelice. À tardinha, surgiam os grupos de meninas, os dos meninos que, mais tarde iam se mesclando nas brincadeiras de pique, de esconde-esconde, de contar histórias, etc...

Mas, eu gostava, mesmo, era de ir para a Fortaleza de Santa Cruz, onde morava meu outro casal de avós, com uma penca de descendentes de dar gosto. Não faltavam tios, primos e achegados para ajudar na farra.

O lugar ficava no outro lado da Baia de Guanabara, bem na entrada da barra e abrigava um quartel do Exército que, outrora, fora um presídio para escravos e gente condenada pela justiça da época.

Bem! Como todo o lugar que tem mar, tem praia ou costão e, principalmente, peixes era ali o meu paraíso. Todas as tardes, lá pelas cinco horas, era parte do ritual irem as famílias para o cais e cuidarem de duas coisas importantes: Reunirem-se para a conversa fiada, do dia, e pescar. Era assim que garantiam o jantar e o almoço do dia seguinte.

Não demorava muito e lá vinha a enxurrada de cocorocas, marimbás e palombetas. Mas, o mais cobiçado, mesmo, era o peixe-porco por não ter tanta espinha quanto os demais; só tinha a coluna vertebral e, em vez de escamas, o corpo era coberto por um couro muito fácil de ser retirado. Uma beleza de peixe! Gostoso e de carne branquinha! Era o meu preferido.

Naquela época era muito comum, entre os meninos, armar arapucas para pegar pombos. Essas aves eram uma verdadeira praga e infestavam todos os lugares possíveis. Faziam seus ninhos no forro das casas e contaminavam tudo com os irritantes piolhos que conduziam.

Mas, não era por isso que armávamos as nossas arapucas. É que a carne era saborosa e ficava muito bem fritinha ou cozida na panela de pressão. No fundo do quintal havia um fogão a lenha e ali era o nosso ponto de farra e comilança...

Um dia, enquanto meus amigos e parentes estavam pescando, no cais, afastei-me um pouco e fui tratar de armar a arapuca, que eu mesmo havia construído com bambu verde.

Ao lado do cais havia um pequeno braço de areia que, carinhosamente, chamávamos de “Prainha”. Lá fixei a armadilha com uns grãos de milho verde, tirados do quintal, coloquei o esteio por baixo e puxei o barbante até à sombra de uma árvore que ficava há uns dez metros de distância.

Acomodado sob a copa da amendoeira, curtia a sombra amiga e o vento suave que vinha do mar, enquanto prestava atenção ao que a sorte reservaria para mim.

Não demorou muito e pude perceber que algo esvoaçante ficara preso na arapuca. Levantei-me, tranqüilo como sempre, e fui tratar de retirar o primeiro pombo da tarde.

Qual não foi o meu espanto, ao verificar que, em vez de pombo, lá estava, ainda com um grão de milho na boca, nada mais, nada menos do que um “peixe voador”! Isso mesmo! Um peixe voador!

Era comum vermos, sobre a superfície da água, revoadas desse tipo de peixes que, para se safarem dos ataques aos seus cardumes, saíam voando espavoridos. Esvoaçavam por alguns metros e logo retornavam à água, juntando-se, novamente aos demais da espécie.

Não foi preciso dizer nada, pois o tamanho do meu espanto foi a dimensão da gritaria que fiz chamando a atenção do pessoal que pescava, na beira do cais. O inusitado do fato rendeu dias de conversa e acabou entrando no rol das estórias insólitas do lugar como: “Peixe que não voa não cai em arapuca”...

Naquela tarde, não comi pombo, o prato do dia foi “peixe voador”...

Amelius
Enviado por Amelius em 05/06/2013
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