Chovia sem parar. A morte da filha foi o maior sofrimento da vida de Bento. Desesperado, nem viu o cair da noite. Uma angústia lhe oprimia o peito fazendo descer lágrimas de uns olhos que nunca haviam chorado antes. Já estava escuro e estiara quando parou de chorar. Ele e o céu haviam se livrado de todas as gotas de água do mundo.
            Bento estava decidido a começar sua caçada. Tinha instinto primitivo, faro aguçado pelos anos de trabalho na solidão das matas fechadas. Tinha certeza de que encontraria aquele rapaz nem que fosse a última coisa que faria na vida. Iria procurar nas vendas de beira de caminho, nas fazendas vizinhas, nos sítios distantes, em todas as trilhas e estradas, pois  são nesses lugares que as pessoas passam.
            Ele ia descobrir. Aquilo não era caso para polícia. Afinal, Adélia morreu de parto. Mas não lhe saía da cabeça que morrera por culpa daquele maldito, e Bento não ia sossegar nessa vida enquanto não desse cabo daquele infeliz que levou sua filha e depois a abandonou sozinha no mundo, com um filho na barriga.
            Adélia nasceu no campo e foi criada  pelo o pai viúvo, que se desdobrava para lhe dar todo o conforto. Mesmo morando longe da cidade, ela  aprendeu a ler e escrever com professora contratada na capital. Sem ter por perto uma figura materna em sua vida, cresceu bonita e já contava com dezesseis anos quando veio pedir ao pai que a levasse num baile na propriedade vizinha. Bento não gostava de festa, mas querendo agradar a filha acabou concordando.
            A moça se encantou com o baile. Era uma novidade na sua vida singela de menina caipira. Naquela noite conheceu Antônio Limeira, que se dizia agrimensor e estava por aquelas bandas, medindo terras para um fazendeiro vizinho. Depois daquele dia, vieram vários encontros, e quando houve o primeiro beijo, Adélia resolveu contar ao pai do seu amor. Bento contrariado tentou em vão, dissuadir a filha, com argumentos de que moço da cidade não servia para ela e além de tudo, era ainda muito jovem, não conhecia a vida.
            Após a conversa, sabendo que Bento não aprovaria o romance, a moça resolveu não contar mais nada ao pai. Começaram os encontros secretos, as juras de amor eterno, as promessas... Até que meses depois, numa fria madrugada de junho, Antônio Limeira e Adélia, fugiram juntos. Apesar da tristeza, Bento não foi procurar os fugitivos. A filha fizera sua escolha, deixou-a seguir seu destino.
            Em menos de um ano, Adélia voltou sozinha, doente e maltratada. Tinha os  pés inchados, rosto cansado. Estava grávida de oito meses.  Abandonada e sem esperanças, sobrou-lhe o choro, as lágrimas de humilhação. Tudo que esperava era receber nesse momento o perdão, o carinho e a atenção do pai. Bento recebeu a filha com um abraço, certo de que falhara como pai. Para redimir-se cuidaria dela e do neto que estava prestes a nascer.
            Debilitada, Adélia acabou não resistindo e  morreu ao dar à luz. Fora um parto difícil, não havia recursos naquelas lonjuras onde não se tinha notícia de médico ou hospital. Na manhã chuvosa, trazida pelo carro de bois, foi enterrada no cemitério da fazenda. O pai colocou uma pequena cruz de madeira no túmulo, juntamente com um ramo de cravos. Chorava, sem saber ao certo se pela filha ou pelo neto que nunca conheceria a mãe. Desesperado, sentou- se na sepultura ao lado e viu saírem uma a uma as poucas pessoas que vieram dar o último adeus à sua menina.
            No dia seguinte, retirou de uma caixa a garrucha Laport 38, dois cartuchos carregados de chumbo grosso, o chapéu e o paletó de couro e sumiu no mundo por vários meses... Dois tiros de uma só vez, Antônio Limeira jazia no chão de um bar, da zona boêmia do lugar. Horrorizada, a clientela do lugar assistira ao assassinato de um dos rapazes mais ricos da cidade.
            O júri foi rápido. Bento era um matuto, os pais do morto eram gente influente, tinham amigos na polícia e nas Leis.  Pegou trinta anos de cadeia, dos quais cumpriu vinte em regime fechado.
            Era madrugada quando abriram os portões da penitenciária. Bento jogou a trouxa nas costas e seguiu rumo  à sua terra. Lembrou-se da filha, não deixou fugir nada da memória. Sentiu a dor da saudade que nunca seria curada. Nesses anos todos mantivera aberta a ferida, significando a presença dela no coração. Como estaria seu neto que ficara aos cuidados de sua irmã beata? Como estaria sua fazenda? Ainda seria proprietário?
            Sentia a friagem do vento contra o rosto marcado pelas rugas. Corujas piavam dentro dos cupins. Curiangos observavam amoitados nos galhos. Respirou o ar da liberdade. Uma curva no caminho, era só atravessar uma ponte de madeira no lugar da antiga pinguela e logo avistaria a terra que tanto amava.
            A manhã clareava, logo seria dia e luz... Era a vida tantos anos depois se refazendo. 
 
 
 
 
               
                       




Conto escrito para o Exercício Criativo.Tema de hoje: "Ferida" .
Leia os autros autores. É só acessar o link abaixo:

http://encantodasletras.50webs.com/ferida.htm



* Agradeço ao amigo Fernando Cyrino pelas dicas.

*Minha amiga Maith escreveu a continuação da história de Bento. Confiram em sua escrivaninha:

http://www.recantodasletras.com.br/contos/4316969

 
Maria Mineira
Enviado por Maria Mineira em 27/05/2013
Reeditado em 14/02/2016
Código do texto: T4311304
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