A Noite do Baile

Alice olhava encantada para si mesma no espelho. O magnífico vestido branco que usava feito sob medida para ela, possuía uma esplêndida saia que descia de sua cintura como um véu e lhe encobria as sandálias. O seu cabelo estava armado em um requintado penteado que deixava alguns cachos saírem de um pequeno arranjo florido em sua cabeça e sustentava a tiara prateada que combinava com o colar. Seu rosto estava iluminado com a sutil, mas graciosa maquiagem que destacava seus olhos claros e seu sorriso. Alice estava realmente feliz. O dia pelo qual ela esperou todos esses meses finalmente havia chegado. No quartinho com um espelho na parede, uma poltrona e uma mesinha de centro na casa de festas que seus pais alugaram para sua festa de debutante, Alice se sentia esmagada entre a alegria e a ansiedade. Desde que seu pai confirmou que faria sua festa de aniversário que ela aguardava por esse momento. Alice até mesmo tinha um calendário no seu quarto, onde a data de seu aniversário estava marcada com caneta cor-de-rosa e sempre que se levantava riscava um dia, contado o tempo que restava para seu baile. Numa manhã clara de sábado em que ela se levantou muito cedo, logo que seu despertador tocou, viu que o dia tinha chegado. Exultante de alegria, ela se vestiu rapidamente e saiu pela casa. Acordou seus pais e telefonou para sua melhor amiga, como se precisasse se certificar de que nenhum deles tinha esquecido. À tarde, enquanto arrumava seu cabelo, Alice insistiu para sua mãe a deixar esperar pela festa no quartinho da casa de festas, onde ela se olhava no espelho e andava apreensiva de um lado a outro, lutando contra o desejo de roer as unhas. O nervosismo também chegou e a envolveu com seus braços frios como o inverno. E se desse tudo errado? E se alguma coisa acontecesse? As perguntas assombravam Alice, rondando em sua volta e ela as afastou. Ela preferia não pensar nisso. Alice só queria se concentrar na beleza desse momento. Hoje é meu grande dia, Alice disse para se mesma. Seu pai, dono de uma pequena lanchonete na quinta avenida, economizou muito e se esforçou muito para que esta festa acontecesse. Tudo ocorreria corretamente.

A porta do quartinho de repente se abre atrás de Alice e ela vê pelo espelho a menininha com um laço muito bem feito prendendo o cabelo castanho entrar correndo.

- Alice, você está bonita – disse a menina.

- Obrigada – disse Alice, sem dá muita atenção à irmã mais nova. Seus pés começavam a doer de tanto andar por aquele pequeno espaço, mas ela estava determinada a não sentar na poltrona para não amassar o vestido.

- É bem macia a sua roupa – disse a menina passando suas mãos pelo vestido de Alice que a afasta – Macia como o meu laço. Você já viu o meu laço? Foi mamãe que fez – a menina aponta para o laço prata brilhante em sua cabeça.

- Sim. É muito bonita.

- Posso pegar sua tiara?

- Não, Ana. Não pode. Onde está a mamãe? Por que não vai procurar ela?

- Não sei. Eu queria pedi um daqueles balões. Eu posso pegar um balão para mim?

- Um balão? Não. Senão as outras crianças vão querer também e vão estragar a decoração da festa – Alice começa a conduzir Ana com a mão em suas costas para a porta – Vai procurar a mamãe.

- Mas eu quero um balão! – Ana resistiu ao braço de Alice e volta para trás cruzando os braços – Se a mamãe deixar, eu posso ficar com um balão? E com um doce?

- Agora você quer um doce também? Quando a festa acabar você pode ficar com tudo o que sobrar, mas antes não.

- Mas eu quero agora! Vou pegar um doce e um balão! – disse Ana e sai correndo do quartinho.

- Ana! Volte aqui! – Alice grita quando não consegui segurar a irmã e sai em seu encalço levantando a barra do vestido. O salão da casa de festas estava completamente decorado com arcos de balões nas cores azul, branco e um prateado brilhoso. Muitas cortinas nas mesmas cores cobriam as paredes presas a esses arcos com laços e fitas. As mesas onde os convidados se sentariam tinham toalhas azuis e brancas e um buquê de flores artificiais no centro. Ao lado das mesas havia um amplo espaço reservado para a dança iluminado com luzes coloridas que acendiam e apagavam enquanto o DJ testava o som. Nenhum convidado ainda havia chegado e as únicas pessoas que circulavam pelo salão além dos profissionais responsáveis pela decoração eram Alice e Ana. Esta última se esconde de baixo de uma mesa, fugindo da irmã que levanta a toalha e se abaixa para encarar a menininha encolhida debaixo.

- Ana, se você não se comportar vou te arrastar para o estacionamento e te trancar no carro – disse Alice se agachando com dificuldade sobre as sandálias de salto. Seus cachos castanhos pendiam de sua cabeça inclinada para olhar para Ana.

- Você não pode fazer isso. Vou contar para o papai – Ana afasta a cadeira atrás de si e sai de debaixo da mesa pelo outro lado. Alice dá a volta, mas Ana entra novamente para debaixo de outra mesa antes que ela a pegasse.

- Chega de brincadeira, Ana. É bom parar com isso antes que eu me irrite – disse Alice dando a volta e passando por cima das cadeiras que Ana derrubava enquanto passava de uma mesa a outra até sair quando alcança alguma distância de Alice e corre pelo salão.

- Ana! – Alice tenta segui-la, mas desiste no meio do caminho e apenas observa a irmã sumir ao virar na entrada para os banheiros. Mais além, seguindo em linha reta, existia uma grande entrada que dava para uma área aberta onde seriam lançados os fogos de artifício que marcaria o início da festa – Ai, já chega – disse Alice se virando. Ela levanta as cadeiras que Ana tinha derrubado quando passa pelas mesas e segue caminhando para a entrada da casa de festas. Quando chega à porta emoldurada por balões e luzinhas como as que se via no natal, Alice vê a mãe na calçada conversando com um rapaz que ajudou na decoração – Mãe! – ela chama.

Lúcia se volta para a filha que se aproximava.

- Alice, o que você está fazendo aqui fora? Não ia esperar lá dentro?

- É a Ana – disse Alice – Ela está lá dentro “pintando o sete”. Não poderia controlá-la antes que ela estrague a decoração da minha festa?

- Alice, seu pai e eu estamos muito ocupados com sua festa. Não podemos está com sua irmã o tempo todo. Você deveria ser mais compreensiva. Ela só tem seis anos.

- Eu sei. Mas não dá para deixá-la fazer tudo o que ela quer. Ela queria arrancar meus balões.

- E por que você não deu um balão para ela?

- Não. Senão os coleguinhas dela de jardim de infância vão querer também e quando estourar os balões eles retiraram mais. Vai ser uma bagunça só.

- O que eu sei é que você vai ter que lidar com isso. Se quiser que eu e seu pai cuidemos bem do baile, vai ter que se entender com a sua irmã – disse Lúcia que desvia sua atenção de Alice para o seu marido que chegava.

- Más notícias – disse o pai de Alice. Ele usava um terno preto que não gostava muito, mas que a filha insistiu para que usasse. Ela queria o pai o mais elegante possível para a hora da valsa – O Edson acabou de me ligar. Ele não vai poder vir. Teve um problema.

- Não é ele que vai soltar os fogos? – perguntou Alice.

- Sim.

- Mas vamos soltar os fogos, não é? – perguntou Alice, preocupada – Você poderia soltar – ela falou para o rapaz, de nome João Paulo, com quem a mãe conversava antes de ela chegar.

- Não – ele falou, descartando a possibilidade – Esses fogos são diferentes. Não é daqueles que você acende o pavio do foguete e aponta para cima. São umas cápsulas num suporte no chão e um comando eletrônico. Requer algum conhecimento técnico. É questão de segurança.

- Eu posso soltar – disse Júlio, para o alívio da filha – Eu conversei muito com o Edson. Inclusive estive numa festa em que ele soltou os fogos. Ele me explicou somente o básico, mas acho que consigo soltar os fogos sem nenhum problema. João Paulo não vai precisar se preocupar com isso. Pode se concentrar na organização da festa.

- Por falar nisso – disse João Paulo – Vou ver se está tudo preparado. Daqui a pouco os convidados começam a chegar – ele fala, e vai para dentro da casa de festas, caminhado pela calçada de ladrilhos cinza.

- Aproveita e vê se a Ana não está arrancando meus balões! – grita Alice, instantes antes de João Paulo cruzar a porta. Se ele ouviu o pedido da debutante, provavelmente ignorou.

- Aninha estava arrancando os balões? – perguntou Júlio.

- Ainda não. Mas se deixar ela vai arrancar todos. Ela estava me perturbando por balões e doces. – disse Alice.

- Por que você não deu? Há muitos balões no fundo do salão.

- É como eu expliquei para a mamãe. Se eu ficar dando balões para a Ana, todas aquelas crianças do jardim de infância que vocês me obrigaram a convidar vão querer também e vão fazer uma bagunça.

- É uma hipótese bem plausível – disse Júlio de forma quase divertida. Geralmente não levava a sério os exageros que Alice fazia das travessuras de Ana – Você não acha que está sendo muito dura com a sua irmã?

- Foi o que eu falei para ela – disse Lúcia – Alice deveria ser mais compreensiva com a irmã.

- Vocês devem achar que sou uma má irmã só por que não deixo Ana fazer tudo o que bem entende. Mas se eu deixasse fazer tudo o que quer aposto que ela não deixaria pedra sobre pedra – disse Alice.

Um João Paulo agoniado rompe pela porta fazendo Alice e seus pais se virarem para ele. Uma expressão de choque esculpida em seu rosto pálido.

- É a Ana – ele disse – Ela sofreu um acidente.

- Ana? – disse Júlio. Ele e a família correm para dentro da casa de festas. Os quatro, João Paulo, Júlio, Lúcia e Alice que vinha por último, levantando a barra do vestido enquanto andava, atravessam o salão e chegam onde o DJ segurava Ana inconsciente em seus braços.

- Não pude fazer nada – ele disse logo que Júlio chegou e tomou a filha em seus braços – Eu mal vi como aconteceu. Acho que ela estava brincando perto da minha mesa e caiu com o choque que levou ao esbarrar em algum fio mal colocado. Sinto muito.

- Ana, fala comigo. Ana! – Júlio dava tapinhas no rosto da filha mais nova. Os olhos da menina estavam semi-abertos e em sua cabeça despontava alguns fios arrepiados. Um indício de que o DJ estivesse certo. Perto do local, cabos de fios que alimentavam as caixas de som serpenteavam no chão. Alguns presos com isolante.

- Ana! – Júlio dizia mexendo o rosto da filha – Ela não está reagindo.

- E se ela tiver batido a cabeça com força? – disse Lúcia. A preocupação embargando sua voz.

- Vou telefonar para a ambulância – disse João Paulo.

- Não! – disse Júlio – Vamos levar para o hospital nós mesmos. Não podemos ficar esperando.

- Pai, eu acho mais seguro esperar pela ambulância – ponderou Alice, mas o pai não lhe deu ouvidos. Ele se levanta e olha para a esposa aflita.

- Vamos Lúcia. Você fica com Ana enquanto dirijo – fala, se dirigindo à saída.

- Esperem. Vocês vão me deixar sozinha?! – disse Alice indo atrás dos pais.

- Alice – sua mãe se voltou para ela e a olhou nos olhos, segurando seus ombros com suas mãos geladas – Alguns minutos de atraso não vão fazer mal. Vamos só deixar sua irmã no hospital. Se precisar, vou ficar com ela e seu pai volta. Não precisa se preocupar. Qualquer coisa que precisar, o João Paulo vai está aí.

- Mas mãe... – Alice começou. Lúcia deu um último olhar para a filha e se virou para acompanhar o marido, deixando a aniversariante a olhar a partida dos dois com o coração apertado.

- Está tudo bem? Precisa consertar alguma coisa? – Alice perguntou para o DJ. Seus olhos estavam carregados de nervosismo e apreensão.

- Tudo certo – disse o DJ – Eu posso consertar o que precisar rapidinho. Não se preocupe.

- Ele tem razão, Alice – disse João Paulo – Não se preocupe. Sua irmã vai ficar bem. Eu, você e os outros que estão aqui podemos tocar a festa muito bem até seus pais chegarem. Vai dar tudo certo. Vou ver como está o Buffet. É melhor você ir para a porta esperar os convidados. Eles já devem está chegando.

Alice poderia falar mais alguma coisa, mas ela não se sentia em condições de questionar nada. Como sugeriu João Paulo, ela foi para a porta e ficou plantado como um poste esperando os convidados. Quase encostando suas costas nos balões e enfeites da entrada, ela sentia a brisa fria da noite e um grande vazio em seu peito. Ela tentava ensaiar os sorrisos e os cumprimentos que daria para os convidados, mas ela não conseguia parar de pensar na sua irmã, em seus pais e na festa. Principalmente na festa. Em seu íntimo, ela repreendia a si mesma, com vergonha. Sua irmã estava no hospital e ela estava mais preocupada com seu baile de debutante. O sentimento se debatia em seu coração e ela tentava ignorá-lo. Ela precisava ser forte e pensar positivo, rezando para que aquilo não tenha passado de um simples contratempo.

Demorou cerca de meia hora até o primeiro convidado chegar. Era um senhor alto e de óculos acompanhado da esposa que usava um lindo vestido amarelo. Alice o conhecia de vista, já que ele era um amigo de seu pai e freqüentava sua lanchonete.

- Boa noite – disse Alice os abraçando com o sorriso mais amigável de que era capaz naquele momento – Sejam muito bem-vindos. Sintam-se à vontade.

O casal lhe desejou feliz aniversário e entrou para o salão escolhendo uma mesa para se sentar. Foi uma questão de cinco minutos depois até Susana, a melhor amiga de Alice, chegar. Ela estava vestida com um elegante vestido de cetim azul e seu penteado não era muito diferente do de Alice. O acompanhante dela, Clayton, usava um terno preto com uma gravata borboleta. Com o cabelo espetado, como usava na escola, e uma postura que exalava tédio ele cumprimenta Alice com um sorrido amarelo. Fazia dois meses que ele e Susana estavam namorando e Alice ainda se perguntava o que a amiga tinha visto naquele rapaz.

- Parabéns, amiga! – Susana falou, abraçando Alice. Ela se afasta um pouco e olha para a amiga segurando-a nos ombros – Nossa! Você está maravilhosa.

- Obrigada – disse Alice, sem ânimo – Você também está incrível.

- Você está bem? Parece abatida.

- Ai, Susana. Você nem imagina. Meus pais tiveram que sair e me deixar aqui sozinha. Eles levaram Ana para o hospital e eu não sei a que hora eles voltam – Alice começou a falar como se as palavras transbordassem de seu coração, aliviando-a de seu peso. Com Susana ali, em sua frente ouvindo com espanto o que aconteceu, Alice não se sentia mais tão sozinha.

- Coitada da Aninha. Foi muito grave?

- Eu não sei. Meus pais ainda não me telefonaram. Eu não sei como ela está.

- Você está pálida – disse Susana, acariciando o rosto de Alice como se tocasse em alguém febril – Você já tomou um copo d’água?

- Água? Não. Não tomei.

- Vem – disse Susana tomando a mão de Alice – Você precisa se sentar.

- Não posso. Preciso receber os convidados.

- Os convidados ficarão bem. Vamos – Susana conduz Alice para uma mesa, onde ela se senta ao lado de Clayton.

- Onde fica a cozinha? – Susana perguntou ainda de pé.

- Ali – Alice disse apontando para uma entrada do outro lado do salão – É lá que estão preparando o Buffet que vai ser servido para os convidados mais tarde.

- Vou lá pegar um copo d’água para você e já volto. Esperem aqui, vocês dois – Susana disse, olhando especialmente para o namorado.

- Tudo bem. Não demore – disse Clayton. Logo depois que Susana saiu, apressando o passo para a cozinha, ele tirou seu celular do bolso e ficou apertando seus botões no que provavelmente seria um joguinho sem nem ao menos olhar para Alice, sentada ao seu lado.

- Aqui está – fala Susana quando chega trazendo um copo descartável cheio de água que entrega à Alice – Como você está se sentindo?

- Melhor agora que você chegou – disse Alice, deixando o copo na mesa quando acaba de beber a água – Estava começando a pensar que teria que passar metade da festa sem ter alguém mais próximo comigo.

- Está tudo bem agora – Susana pegou a mão da amiga – Estou aqui para o que precisar. Alias, nós dois estamos, não é Clayton?

Clayton fez que sim com a cabeça sem tirar os olhos do celular.

- Clayton, por favor, quer largar esse celular? Alice precisa da gente.

- Está bem. Está bem – Clayton pôs seu celular novamente no bolso – Posso sugerir uma música para o DJ?

- Sim – disse Alice num dar de ombros – Para falar a verdade, a festa ainda nem começou.

Clayton arrastou sua cadeira e se dirigiu à bancada do DJ.

- Fomos os primeiros a chegar? – perguntou Susana.

- Sim. Antes de você chegou apenas um amigo do meu pai com a esposa. Mais ninguém.

- Você acha que ele chega a tempo da valsa? O seu pai, eu quero dizer.

- Espero que sim. Minha mãe falou que uns poucos minutos de atraso não vão fazer mal. E se Ana precisar ficar em observação, minha mãe vai ficar com ela e meu pai volta.

- Entendo – disse Susana – Seu pai vai chegar daqui a pouco, trazendo boas notícias, você vai ver. E você vai dançar uma magnífica valsa com ele.

Alice sorri.

- Espero que sim – ela disse.

A música que tocava é interrompida e em seguia outra música começa. Uma música internacional romântica de uma banda que Clayton adorava, mas que Susana detestava por um motivo que Alice conhecia bem. Alguns convidados começam a chegar. O fotógrafo que os pais de Alice contrataram mexia em sua câmera no canto, enquanto mulheres de vestidos elegantes e homens entravam e se sentavam ou circulavam pelo ambiente. Alice observava alguns deles até que alguém toca gentilmente em seu ombro. Ela se vira para olhar para o Adolescente de smoking de pé ao seu lado.

- Hugo! – Alice se levanta para abraçar o príncipe de seu baile.

- Você está linda – Hugo disse – Então, como está a festa?

- Vai ficar melhor agora.

- Veja com quem eu vim – fala Hugo apresentando os outros dois jovens que estavam com ele: uma garota da idade de Alice de cabelo curto e sobrancelhas desenhadas a lápis e um rapaz loiro de aparelho dentário. Ele estava de mãos dadas para a garota. Susana vira o rosto assim que a vê. Ela já havia conversado muito com Alice sobre aquilo, mas mesmo a amiga tendo alegado que como queria convidar todos os colegas de sala, isso implicaria também em convidar Débora, a ex-namorada de Clayton, Susana ainda achava que Alice deveria abrir uma exceção.

- Espero que não tenhamos chegado muito cedo – disse Débora depois que ela e o acompanhante cumprimentam Alice. Ela se senta na cadeira onde Clayton estava sentado e o garoto com quem estava tira outra cadeira de outra mesa para ele.

- Chegaram exatamente na hora – disse Alice – A festa já vai começar.

- Onde estão seus pais – fala o acompanhante de Débora – Seria bom cumprimentá-los também.

Alice engole em seco.

- Eles tiveram que dar uma saída. Mas daqui a pouco estão voltando – ela disse.

- Nossa! Eu adoro essa música – fala Débora.

- Não me diga – disse Susana, metralhando Débora com o olhar. Ela fez uma anotação mental de tirar satisfações com Clayton sobre ele ter pedido ao DJ da festa de Alice a música que gostava de ouvir com a ex – Vocês dois estão juntos? – ela perguntou, apoiando o queixo nas mãos. Alice podia até ver as linhas de tensão no rosto da amiga.

- Sim – disse o rapaz, pegando a mão de Débora e a olhando com fascínio – Nos conhecemos a algumas semanas numa festa.

- Muito bom – disse Susana – Fico feliz por vocês. É realmente bom encontrar alguém com quem compartilhar as alegrias.

- A propósito – fala Débora – Como o Clayton está? Faz tempo que não o vejo.

- O Clayton? – fala Susana, quase surpresa com a pergunta – Ele está bem. Aliás, nós estamos bem.

Débora acena, sorrindo como se quisesse demonstrar que aquilo a deixava feliz e segue-se um minuto de silêncio constrangedor preenchido apenas pela música favorita de Débora e as vozes dos convidados que chegavam e se sentavam nas mesas próximas até que Hugo fala, como que para quebrar o clima.

- Olha só quem chegou.

Todos os outros se viram para olhar para Clayton que chegava, atravessando a área da dança. Alice não podia ler suas expressões com exatidão, mas parecia que ele ficou razoavelmente abalado ao ver Débora. Ele pega uma cadeira desocupada de outra mesa e se junta ao grupo.

- Você não morre hoje, Clayton. Estávamos agora mesmo falando de você – disse Hugo.

- É? Bem ou mal? – Clayton disse com uma risada forçada e nervosa.

- Débora perguntou como você estava e eu respondi que estava bem. Nós dois estamos bem, não é? – Susana disse, passando a mão nos cabelos de Clayton.

- É. É mesmo – ele disse. Alguma coisa de sua postura, o tom de sua voz e seu olhar baixo fitando o buquê de flores artificiais no centro da mesa fazia aquele rapaz entediado que ele era quando chegou dar lugar a alguém nervoso e muito desconfortável.

- Também comentei que essa música é a minha favorita. Nós dois ouvíamos ela juntos. Lembra? – disse Débora. Se aquilo foi para provocar Susana, funcionou. Ela enrubesceu e passou a segurar com mais força o ombro do namorado.

- Lembro – disse Clayton.

Alice, Hugo e até mesmo Gilvan acompanhavam inertes aquela esgrima de olhares, palavras e gestos provocativos entre Débora e Susana em torna de Clayton que ia de um grau a outro de desconforto na medida em que observava a interação carinhosa entre sua ex-namorada e o acompanhante dela, o que não melhorava em nada o humor de Susana nem o clima tenso que já estava grande na mesa antes mesmo de ele chegar. Ao redor deles, os convidados que chegavam, circulavam pelo ambiente sem muito ânimo. Mesmo com a música tocando, tudo estava muito monótono e parado. Preciso agitar essa festa antes que ela afunde de vez, Alice pensou. E depressa.

- Quer dançar Débora? – perguntou Gilvan.

- Claro – ela diz.

Os dois se levantam e seguem de mãos dadas para a área de dança, onde Débora dançava com a jinga e a sensualidade invejáveis, enquanto Gilvan se requebrava dando sacudidelas desajeitadas para frente e para traz. Observando os dois, estava Clayton. Ele olhava fixamente para o casal e Alice quase podia ver as faíscas de ódio saindo de seus olhos. Ou seria efeito da iluminação da festa? Aquilo lhe deu uma idéia.

- Com licença. Volto já – Alice se levanta e anda pelo salão. Algumas pessoas a param para cumprimentá-la e lhe desejar feliz aniversário. Ela responde cordialmente e segue até a entrada do Buffet, onde ela procura por João Paulo. Travessas de guloseimas, doces e bebidas estavam dispostas em mesas que três cozinheiras preparavam com esmero. No meio, estava o seu bolo rosa com duas velas formando o número quinze no topo. Ele estava em cima de uma mesa que seria transportada para a área de dança, no momento dos parabéns.

- João Paulo! – Alice chama.

O rapaz que ajudava as cozinheiras com os salgados vem em resposta.

- O que foi Alice?

- Você pode lançar os fogos?

- Lançar os fogos? Não! Você não me ouviu? É preciso um técnico para montar a base dos fogos com segurança. Você tem que esperar seu pai.

- Por favor, não vai dar para esperar por ele. As pessoas estão chegando e não sei o que vão pensar se não começarmos logo. Você não quer que minha festa seja um fracasso, não é?

- Peça para o DJ por uma música. Peça que as pessoas dancem. Há mais de uma maneira para animar uma festa – João Paulo disse, pensando ser convincente.

- Isso já foi feito. Inclusive tem pessoas dançando.

- Então?

- Por favor, João Paulo – Alice disse, fazendo a mesma cara que fazia quando pedia algo para seus pais, embora não soubesse se iria funcionar com João Paulo – Você sabe montar os fogos, não sabe?

- Sim. Quero dizer, mais ou menos.

- Então. Por favor...

- Tudo bem – disse João Paulo, sabendo que Alice não iria desistir – Deixe-me ver o que posso fazer.

- Perfeito! - disse Alice, dando pulinhos de contentamento – Estou lhe devendo uma.

- Sei – fala João Paulo saindo do Buffet, onde Alice permanece por mais alguns minutos, sentindo o aroma de todas aquelas comidas e bebidas. Ela se aproxima de uma das mesas e pega um doce. Talvez não houvesse problema de ela provar alguma coisa antes da hora. Afinal, ela era a aniversariante. Ela pega um doce com a ponta dos dedos e põe em sua boca, apreciando o sabor até perceber o olhar reprovador de uma cozinheira.

- Desculpe – disse Alice. E a cozinheira com touca na cabeça volta ao seu trabalho.

Vozes exaltadas começar a vir do salão. A princípio, Alice pensou que seria pelo aumento do número de convidados que estavam chegando, mas a maneira como falavam não era característica de várias conversas paralelas em uma multidão. Alice nem mesmo se lembrava de ter convidado tantas pessoas assim. E não eram diferentes vozes. Alice reconhecia algumas delas. A voz de Clayton, mas ela não tinha certeza. Uma voz feminina, possivelmente a de Débora e outra bem mais reconhecível. Susana. Ela reconheceria a voz da amiga em qualquer lugar. Alice corre para o salão e encontra os convidados de sua festa formando um semicírculo ao redor de Clayton, Débora, Gilvan e Susana que compartilhavam de uma discussão acalorada.

- Você não tinha esse direito – disse Susana, segurando o choro – Por que fez isso comigo?

Alice abriu caminho entre os convidados e vê Gilvan sendo segurado por Hugo, sagrando no canto da boca. Clayton estava adiante olhando para ele com os punhos cerrados.

- O que está acontecendo? – perguntou Alice.

Os outros abaixam a cabeça ou se olham constrangidos como se esperasse que alguém desse a explicação que Alice exigia.

- Clayton e Gilvan brigaram – a resposta veio de Hugo – Ou melhor, Clayton brigou com Gilvan. Ele deu um soco nele.

- O quê? Por quê?

- Ciúmes – fala Susana com o rosto grave – Clayton sentiu ciúmes da ex.

- Você não vai falar, não é Clayton? – disse Débora, o encarando – você não termina com ela e ainda explode desse jeito se eu estiver com alguém. Como se eu lhe devesse alguma coisa depois de tudo.

- Do que você está falando? – disse Susana olhando para Clayton que lhe dava as costas – O que ela quer dizer com isso?

- Se você não fala. Eu falo – disse Débora. Mas Clayton continua sem se manifestar, mantendo o olhar baixo – Você disse que iria terminar com a Susana para ficar comigo. É isso mesmo – Débora olhou para Susana e depois para o resto das pessoas – Nunca terminamos de verdade. Quando Clayton começou o namoro com Susana tínhamos acabado de brigar. Não sei se foi para me fazer ciúmes, ou o quê. Depois, mesmo com o namoro firme com Susana, passamos a nos encontrar. Ele me prometeu que iria terminar com Susana para ficarmos juntos de novo, mas até agora não teve coragem suficiente para isso. Fiquei sabendo que eles dois vinham juntos, e resolvi também convidar alguém.

- Isso é verdade, Clayton? – perguntou Susana. Ela elevou a mãos ao rosto tentando esconder suas lágrimas – Você me fez de boba esse tempo todo?

Clayton permaneceu imóvel, fitando um ponto qualquer do piso. Aquilo não precisava de palavras. Susana se vira e corre pelo salão como se pudesse fugir de sua vergonha. Alice vai atrás da amiga gritando o seu nome. Se ela se virasse, veria Clayton segurar o braço de Débora e gritar-lhe algo. Gilvan se solta de Hugo e avança para ele. Os dois caem pelo salão trocando socos e pontapés.

Susana alcança o banheiro feminino e se tranca nele.

- Susana, abra essa porta. Por favor – disse Alice batendo na porta quando ela chega pouco depois de Susana entrar e se trancar. Do outro lado era possível ouvir os soluços de seu choro.

- Vá embora! – ela gritou – Não quero falar com ninguém.

- Por favor, abra. Sou eu – Alice disse, enquanto batia com força na porta – Alice.

- Já disse que não quero falar com ninguém – Susana insistiu.

Aquilo não estava ajudando. Pelo muito que Alice conhecia da amiga, ela poderia ficar ali a noite toda até Susana resolver conversar com alguém. Alice encosta-se à porta, primeiro com as mãos já doloridas de bater, depois com o ombro, as costas e em seguida ela estava sentada aos pés da porta. Sua festa nem tinha começado e ela estava exausta. Sua irmã estava no hospital, seus pais não estavam ali, sua melhor amiga estava trancada no banheiro chorando convulsivamente, e dois garotos brigavam no salão de sua festa proporcionando um espetáculo nada bonito para os seus convidados. Alice não conseguia mais imaginar o que mais poderia dar errado. Seu sonho estava reduzido a ruínas. Ela juntou as mãos ao rosto sentindo as lágrimas chegarem e se perguntou se poderia suportar mais alguma coisa. No fundo, o que ela queria era ter onde se trancar como Susana. Um lugar seguro, onde se esconder de tudo aquilo. Mas alguma coisa lhe dizia que ela não poderia fazer isso. Aquela era a sua festa. Ela precisava salvá-la. Se levantar e catar cada pedaço do baile que tenha sobrado. Era uma questão de honra. Ela devia isso a se mesma.

Alice se levanta, limpa suas lágrimas e volta para o salão virando a esquina da entrada para os banheiros. O círculo de pessoas que assistiam à briga tinha se dispersado e Hugo estava perto de Gilvan sentado em uma cadeira, segurando um lenço no canto da boca que sangrava. Clayton e Débora, cada um em um canto, estavam cercados de alguns colegas que Alice reconheceu assim que os viu. Muitos deles olhavam para Alice, enquanto ela caminhava até Hugo.

- Tudo bem?

- Tudo – disse Hugo – Eu consegui apartar a briga. Não antes de levar alguns socos também – ele disse segurando o próprio queixo – E você? Como está?

- Vou sobreviver. Ah, diferente da minha festa. Está tudo um caos.

- Vai ficar tudo bem – disse Hugo – Ainda é cedo. Sua festa pode começar do zero.

- Começando a festa agora ou não. A noite termina aqui para mim. Vim aqui foi um erro – Gilvan murmurou com a boca sob o lenço. Mas sua voz ficou quase inaudível com a música que tocava.

Começar a festa. Aquilo lembrava Alice de alguma coisa muito importante que ela não conseguia identificar o quê precisamente. Com toda a confusão ela tinha se esquecido de algo. Uma coisa atinge um arco de balão, explodindo em faíscas multicoloridas e Alice se lembra do que tinha esquecido. Há outra explosão, no outro lado do salão provocando um foco de incêndio que cresce consumindo as cortinas e se espalha. Mais explosões se seguem onde flashes brilhantes que rompiam pelo salão de festas atingiam e os convidados começam a correr. Débora quase é atingida por um desses flashes que bate contra a parede, consumindo as cortinas em chamas e a garota grita...

- Fogo!

A mesa do DJ é atingida e a música pára, deixando que os gritos e os sons dos balões estourando com o fogo acompanhem as explosões e a correria.

- O que está acontecendo? – perguntou Hugo. Alguma coisa atinge uma mesa perto de onde ele estava com Alice e as tolhas começam a queimar. Gilvan se levanta da cadeira e se uni à multidão de convidados que corriam para a saída. Outros flashes rápidos atingiam as mesas perto o suficiente de Alice para ela ver o que era.

- Parecem foguetes... Fogos de artifícios – é o que Alice conseguiu dizer antes de um excesso de tosse provocado pela fumaça que não demorou em tomar contar do ambiente ardendo com o brilho laranja das chamas que o consumiam. O bombardeio de fogos de artifícios continuou, vindo da entrada no fundo do salão que era bloqueado pelos enfeites em chamas que caiam. Antes que ela seja totalmente bloqueada, João Paulo passa por ela correndo pelo salão, protegendo com a gola da blusa a boca e o nariz.

- O que houve João Paulo? – Alice perguntou, quando o rapaz chegou atravessando a fumaça e as labaredas.

- Acho que não consegui montar... Os foguetes... Fogos de artifício – ele é interrompido pela tosse e por mais explosões. Dessa vez a bancada do DJ expeliu faíscas que alimentaram o incêndio – Os foguetes viraram quando eu ativei, e eles começaram a atirar para o lado... Para cá.

- Temos que sair rápido – Hugo segura o braço de Alice e tenta ir com ela para a saída, passando pelas mesas caídas ou que pegavam fogo. Um pedaço da barra do vestido de Alice começa a queimar e João Paulo tenta apagá-lo com os pés. Os convidados que tentavam em vão apagar as chamas desistiam e também corriam para a saída, alguns esbarrando na debutante que se esforçava para correr com as sandálias de salto. O fogo estava quase alcançado a saída amontoada dos últimos convidados que saíam. As três cozinheiras que trabalhavam no Buffet tinham acabado de sair da cozinha quando o incêndio se propagou por ela e foram as últimas pessoas a sair antes de João Paulo, Hugo e Alice que puxou seu braço do aperto do príncipe do baile e parou a metros da saída.

- O que foi Alice? Você não vem?

- Susana! Ela ficou no banheiro. Precisamos ir buscá-la – disse Alice. Sem pensar duas vezes ela tirou as sandálias e deu meia volta.

- Alice! – Hugo correu atrás dela seguido por João Paulo. Os dois corriam pelo salão em chamas olhando para o vestido branco da debutante que sumia em meio à fumaça.

- Alice, para! – gritou Hugo. Alguns foguetes ainda estavam sendo disparados da entrada em chamas no fundo do salão e um atingiu uma estrutura no teto que sustentava alguns holofotes e ela cai sobre seu ombro.

- Hugo, você está bem? – disse João Paulo, levantando Hugo.

- Estou... Meu ombro está doendo muito, mas estou bem... Vá pegar Alice.

- Vou pegá-la, mas primeiro temos que te tirar daqui – João Paulo levanta Hugo que põe o braço em volta do seu ombro para se sustentar e os dois voltam para a saída.

Alice chega à volta da entrada para os banheiros e bate forte na porta quando a alcança.

- Susana! Nós temos que sair daqui.

- Vá embora! – ouviu-se a voz de Susana, do outro lado.

- Susana... – Alice tossiu – está acontecendo um incêndio. Temos que sair rápido.

- O quê?

- Um incêndio. Abra logo.

Houve um instante de quietude até a maçaneta girar e a porta ser forçada, relutante em ser aberta.

- Não estou conseguindo abri-la – disse Susana – Acho que está empurrado.

Alice também tenta abrir a porta e até dá um chute nela, sem muito efeito.

- Fique calma. Vou achar alguma coisa para abrir – Alice procura por alguma coisa em volta. Preso à parede estava um extintor de incêndio grande que Alice ainda não tinha percebido. Ela se esforça para tirá-lo e o corpo vermelho cai com um estalo. Aquilo era mais pesado do que ela pensava. Alice levanta o extintor esforçando o fôlego já comprometido pela fumaça e desfere um golpe contra a porta que oscila em um tremor. Ela defere outro e um terceiro e no quarto golpe o trinco se rompe dando passagem a uma parede de fumaça que avança para dentro e à Alice que entra depois dela.

- Você está bem? – perguntou Susana.

- Sim. Estou – disse Alice. A tiara estava torta em sua cabeça e sua face estava banhada de suor que desfigurava sua maquiagem.

- Como vamos sair daqui? – disse Susana. Ela e Alice se afastam para os fundos do banheiro fugindo da fumaça e do calor vindos do fogo que devorava o que sobrou da decoração da festa, perto da porta. Alice arrastava o extintor consigo, sentindo o piso frio do banheiro nos seus pés descalços.

- E se ficarmos aqui? – Alice perguntou.

- Por quanto tempo? Vamos morrer sufocadas antes que chegue alguém.

Alice olha em volta.

- Tem uma janela aqui em cima, mas é muito pequena.

- Podemos sair abrindo caminho com o extintor – sugeriu Susana.

- Você acha seguro?

- Temos que sair daqui de uma forma ou de outra – Susana fala.

Alice tira o lacre do extintor e aperta o gatilho, tomando um susto com o jato de espuma que sai da ponta da pequena mangueira que segurava com a outra mão.

- Vamos ter que tentar, antes que o incêndio aumente. Fique atrás de mim – Alice caminha até a porta. Ela toma um profundo fôlego segurando o gatilho do extintor que era arrastado ao chão e sai junto com Susana através daquele caos de fuligem, fumaça e chamas no qual o baile havia se transformado. O jato branco de espuma varria os focos de incêndio que queimavam todos os objetos e móveis no chão ou ainda de pé, encostados à parede resistindo até o último minuto. As duas viram na entrada para os banheiros e andando o mais depressa que podem as duas chega à metade do salão. Uma viga que sustentavam holofotes estava atravessada na área da dança e Alice o apaga para passar por cima dele. Porém, mais adiante todas as mesas queimavam formando uma cordilheira de chamas que bloqueavam a passagem das duas.

- Temos que voltar – disse Susana. Ela se virou, na esperança de encontrar uma passagem segura, mas os fundos do salão não contavam uma história diferente do que estava à frente delas. O fogo estava como que vivo, devorando o que quer que encontre.

- Não vai dar para voltar. Vamos ter que seguir em frente e ir para a rua. É mais seguro – Alice gritou acima do crepitar das chamas.

- Você acha que dá para fazer isso? – perguntou Susana.

Alice demorou em responder.

- Sim – ela disse – Nós vamos conseguir.

Nós precisamos conseguir, era o que ela queria dizer. A cada segundo que Alice permanecia naquele inferno, ela sentia sua vida a abandonar, sondada pela fumaça que lhe sufocava e pelo calor que embaçava sua visão. O seu corpo magro de uma menina de quinze anos começou a ficar pesado para suas pernas. Ela segura com mais força o extintor, sua única arma contra o fogo, que escorregava com o suor de suas mãos e aperta com dificuldade o gatilho para deixar o resto da espuma que sobrou se lançar para frente, abrindo uma trilha estreita entre os destroços das mesas e cadeiras que queimavam.

- Vamos – disse Alice.

As duas amigas caminham para frente o que foram poucos metros até o extintor morrer, cuspindo uma névoa fria que rapidamente sumiu, sucumbindo ao calor.

- O extintor acabou – disse Alice, deixando-o cair no chão, sem mais forças para segurá-lo.

Susana se encostou à amiga em apoio recíproco.

- O que faremos agora?

- Eu não sei – disse Alice, sentindo-se desfalecer pouco a pouco – Eu não sei.

Ela e Susana ficaram paradas no salão, onde estavam as mesas e cadeiras, sem poder avançar para nenhum lado já que estavam cercadas pelas chamas que as ameaçavam em todas as direções, se espalhando pelos destroços e fechando o cerco. Alice sentia o calor que emanava da tempestade de labaredas e fecha seus olhos lagrimejantes, ficando consciente de Susana encostada a ela e do furacão de chamas ao redor de si, mas até mesmo isso começa a se afastar, como se fosse um sonho ruim do qual ela estivesse acordando. Era como se o mundo estivesse se desmanchando com o tremeluzir do ar aquecido. Um mundo que Alice perdia contato, até cair sobre ela a cascata de água e os braços fortes a levantar.

* * *

A coluna de fumaça se erguia do esqueleto negro que sobrou da casa de festas e se erguia para cima, vez por outra encobrindo a lua minguante que velava a tragédia do alto. Alice também podia ver os escombros que ainda tossia o resto do incêndio de longe, apesar dos carros de bombeiros que estavam entre ela e o prédio da casa de festas de onde foi tirada antes de se tornar parte das cinzas que voavam com a brisa noturna e caiam como uma chuva sobre a rua. Mesmo à beira do desmaio, Alice insistiu para receber os primeiros socorros ali mesmo e esperar por seus pais. Ela estava sentada à porta de uma ambulância com uma máscara de oxigênio no rosto e sendo examinada por uma enfermeira esguia.

- Parece que está tudo bem com você – disse a enfermeira terminando de medir a pressão de Alice.

- Eu já falei – disse Alice retirando a máscara – Está tudo bem comigo. Eu só estava zonza por causa da fumaça, mas já passou.

- Não tire a máscara, por favor – reclamou a enfermeira.

- Mas eu não agüento mais ficar com ela. E já me sinto bem melhor agora.

A enfermeira pôs a máscara de oxigênio novamente no rosto de Alice passando o elástico em torno de sua cabeça.

- Fique um pouquinho mais com ela.

- Foi a mesma coisa comigo. Essa máscara é horrível – falou Susana saindo de detrás de uma porta da ambulância. Seu rosto um pouco sujo de fuligem, combinando com vestido nas mesmas condições era mal iluminado com a confusão de sirenes e faróis dos carros dos bombeiros e outros veículos estacionados na rua, o que fez Alice demorar alguns instantes para reconhecê-la. Ou ainda, Alice não a reconheceu de imediato por que ainda estava com a visão embaçada devido ao calor e à fumaça, mas mesmo que a enfermeira estivesse certa sobre ela ter que ficar mais tempo com a máscara para se recuperar completamente, Alice a tira logo que a enfermeira sai.

- Como você está? – perguntou Susana.

- Melhorando, depois de tudo – disse Alice. Susana se senta ao seu lado.

- Nem sei como te agradecer por voltar e me ajudar a sair.

- Amigas são para isso. Além do mais, tudo isso foi minha culpa.

- Tudo?

- Sim. Se eu não tivesse insistido com João Paulo para ele soltar os fogos...

- Foi um acidente – Susana se virou para Alice – E acidentes acontecem. Não há como prevê ou controlar. Você só estava zelando pelo seu baile.

- Exatamente, Susana. Eu estava começando a ficar obcecada com isso, ignorando tudo e todos. Se eu tivesse cuidado de Ana, se eu não tivesse insistido com João Paulo... Ah, Meu Deus. O João Paulo. Ele vai ser preso por minha causa – Alice escondeu o rosto com suas mãos, apoiando seus braços nas coxas.

- Não, Alice – Susana pôs o braço no ombro da amiga – É como eu falei: foi um acidente. Viu? Ninguém se machucou. Ele não vai ser preso.

- Hugo se machucou. Alguma coisa caiu no ombro dele e o levaram para o hospital – Alice disse sem tirar as mãos do rosto.

- Mas não foi nada grave. E o próprio João Paulo cuidou dele. Não há com o que se preocupar. Por falar nisso, seus pais sabem do que aconteceu?

- Alguém deve ter ligado para eles. Já devem está a caminho – Alice retirou as mãos do rosto e olhou para os carros e pessoas à sua frente. Ali não estava tão cheio de gente. Somente os bombeiros que terminavam de apagar as chamas e alguns convidados que ainda não tinham ido embora. Mas Alice estava certa de que atrás do isolamento de fita amarela e cones que os bombeiros tinham colocado na esquina, estava uma pequena multidão de curiosos perguntando uns aos outros o que tinha acontecido, qual seria a causa ou se alguém teria morrido. Essa imagem faz Alice pensar se seus pais estariam enfrentando o congestionamento causado pela interdição da rua, morrendo de preocupação com as duas filhas. Uma no hospital, desacordada por causa de um choque e uma pancada na cabeça e outra na sua festa de aniversário, em meio ao incêndio que ela indiretamente causou. Se o baile de debutante é um rito de passagem no qual a menina se torna mulher como muitos falam, Alice entrou na vida de adulta de uma maneira muito marcante. Não era isso que ela queria? Uma festa inesquecível? Por ironia ou não, os convidados passariam muito tempo falando do baile de Alice, assim como ela queria. Alice olhou para os últimos focos de incêndio na casa de festas e se imaginou assoprando-os como velas de aniversário e se encontrou silenciosamente fazendo um pedido. Feliz aniversário Alice, ela disse para si mesma. Muitos anos de vida.

O incêndio que corroeu as entranhas da casa de festas fazendo dela um prédio condenado é completamente apagado e um lampejo de fumaça sai da porta como um último suspiro, varrendo de cinza parte da rua. Da brancura da fumaça Alice viu se aproximando alguém. Tanto o macacão amarelo aparentemente feito de um tecido muito duro e o capacete preto com uma viseira levantada que ele usava tinham faixas refletoras que brilhavam com as luzes dos carros, enquanto o bombeiro se aproximava.

- Oi – ele disse com uma voz suave. Alice não podia dizer muito sobre a aparência do bombeiro. A viseira mesmo levantada lhe encobria o rosto e ainda havia a questão da fuligem e da escuridão da rua precariamente iluminada com faróis e sirenes giratórias, mas apesar disso Alice sabia que ele era um homem bastante jovem.

- Oi – Alice responde.

- Eu encontrei sua tiara – o bombeiro levantou sua mão enluvada que segurava a tiara prateada. Alice elevou sua mão à cabeça, somente agora se dando conta da falta do adorno – Eu a vi cair na rua enquanto carregava você para fora do prédio e quando fui procurar encontrei perto de um carro.

- Foi você que me carregou?

- Sim. Eu e um colega entramos com a mangueira de incêndio para apagar o fogo e encontramos vocês duas no meio do salão de olhos fechados. Quase banhamos vocês duas sem querer.

- Não seria tão mau assim. Eu estou imunda – Alice olhou com desgosto para sua roupa, passando a mão no vestido como se pudesse limpar as manchas de fuligem.

- Molhar vocês? E estragar um vestido tão bonito?

Alice olhou para baixo um pouco encabulada.

- Obrigada. Mas o vestido não está tão bonito agora. E muitas outras coisas foram estragadas hoje, além dele.

O bombeiro entregou a tiara para Alice e esperou um curto momento até fazer a próxima pergunta.

- Você é filha do Júlio, o dono da lanchonete na quinta avenida, não é?

- Sou. Você conhece meu pai?

- Conheço. Nossa! Ela já me ajudou muito. Eu morava longe da academia de bombeiros na quinta avenida e vivia sem muito dinheiro para o lanche. Seu pai permitia que eu fizesse a minhas refeições lá e pagasse quando pudesse. E essa foi uma das coisas boas de freqüentar aquela academia, cá entre nós.

Alice sorriu verdadeiramente pela primeira vez, desde que estava no quartinho da casa de festas.

- Eu sempre ficava pensando em um jeito de agradecê-lo – falou o bombeiro.

- Bem, você já fez muito hoje.

- Apagando o incêndio? Só fiz meu trabalho.

Alice olhou melancólica para sua tiara e a põe de volta na cabeça.

- Obrigada por recuperar minha tiara. Seria triste uma debutante ficar sem sua coroa na noite de sua festa – disse Alice, sem disfarçar o tom irônico.

- Seria triste uma debutante ficar sem outra coisa também na noite de seu baile – disse o bombeiro.

- O quê?

O bombeiro retirou o capacete mostrando seu cabelo loiro e um rosto de um rapaz que deveria ter aproximadamente uns vinte anos.

- Sua valsa – ele disse, estendendo a mão – Pode me conceder a honra. Seu pai ainda não chegou e não estou vendo o príncipe de seu baile.

- Como? – Alice disse, sem saber o que dizer ou pensar do pedido.

- Vai, Alice – disse Susana – Qual o problema? O príncipe do baile foi levado para o hospital com um machucado no ombro, mas não acho que foi muito grave – ela disse para o bombeiro.

Alice se vira da amiga para os olhos do bombeiro. Ela desceu da ambulância e caiu com seus pés descalços no asfalto. Ela quase tinha se esquecido de que estava sem suas sandálias.

- Não se preocupe, prometo ser um bom menino – disse o bombeiro quando Alice chegou até ele. Ela põe a mão em seu ombro e o bombeiro que segurava a outra mão de Alice põe a sua mão direita gentilmente em suas costas.

- Tudo bem – Alice sorriu. Ela coloca seus pés pequenos de adolescente em cima das botas do bombeiro, cada uma em um pé e o bombeiro começa a dançar com ela na rua. Passo para frente e para trás, nos movimentos da valsa que Alice havia ensaiado com seu pai e com Hugo. Mas naquele momento ela não precisava se lembrar dos passos ou se preocupar se iria pisar no pé de seu parceiro. Ela se deixava guiar inteiramente pelo bombeiro, enquanto fitava seus olhos da cor de um céu sem nuvens.

Uma música começa a tocar e algumas pessoas que estavam por perto começavam a se aproximar para assistir aquela que Alice julgou que seria uma cena um tanto estranha. Uma debutante maltrapilha recém-salva de um incêndio dançando valsa na rua com um bombeiro era algo que não se via todo dia. Os rostos das pessoas que chegavam para assistir deixavam as sombras do susto do incêndio ir embora e dar lugar ao encantamento e ao deslumbre, esquecidas por um instante do que tinham passado na casa de festas. Até mesmo os bombeiros que subiam nos carros escarlates depois de cumprirem seu trabalho paravam por um breve tempo para observar a valsa que o bombeiro dançava com Alice. Quando os dois param, são ovacionados por uma salva de palmas que aquela platéia lhe saúdam.

O bombeiro se curva agradecendo os aplausos. Alice ficava parada enrubescendo, e dessa vez não era do calor do fogo ou da asfixia da fumaça.

- Nossa! Que constrangedor – ela sibilou para o bombeiro.

- Não precisa ficar envergonhada. Muito pelo contrário. Hoje era para ser uma noite muito especial para você e pode continuar sendo, apesar de tudo – ele diz e beija as mãos de Alice – Preciso ir. Foi muito bom te conhecer.

- Foi uma honra te conhecer também – ela disse. E o bombeiro partiu para se juntar aos seus colegas.

- O que foi aquilo, amiga? – disse Susana depois que a platéia de convidados se dispersou. Entre as pessoas que pararam para ver Alice, Susana não deixou de reparar, estavam alguns colegas de escola – Não é qualquer uma que consegui conquistar um cara bonito como aquele. Ainda por cima bombeiro.

- Eu não conquistei ninguém – disse Alice – Ele só quis ser gentil comigo.

- Mesmo assim. Sorte sua eu está com meu celular para reproduzir uma música para vocês. Clayton me devolveu depois que fomos resgatadas. Eu tinha pedido para ele guardar meu celular no bolso antes de vir.

- Aconteceu tudo tão rápido que nem te perguntei como você está com relação a essa história com o Clayton.

- Está tudo bem. Clayton é um babaca. Ele tentou se explicar dizendo que nunca quis me magoar, mas eu não dei muita atenção. Ele e Débora se merecem.

- Sinto muito.

- Não se sinta mal por mim. Estou melhor sem ele – disse Susana. Alice estava pensando em algo para dizer à amiga quando o celular de Susana toca.

- Alô? – Susana disse e ouviu por um instante a pessoa do outro lado da linha e em seguia entregou o celular para Alice – É para você. São seus pais.

Alice pega o celular com as mãos geladas como se compartilhasse da apreensão dos pais e atende o telefonema. Depois que Alice respondeu a toda a chuva de perguntas de sua mãe, garantindo que estava bem e que nada de muito grave tinha acontecida nem a ela, à Susana ou a nenhuma outra pessoa que estava na festa, Lúcia contou que Ana estava bem e que tudo não havia passado de um grande susto. Ela contou também sobre João Paulo ter ligado para eles falando sobre o incêndio e como ela e Júlio ficaram desesperados ao saber que ele não conseguiu voltar para pegar Alice quando ela voltou para pegar Susana. Mas que pouco depois eles receberam um telefonema de um amigo de Júlio dizendo que as duas foram resgatadas sãs e salvas. Alice também contou sobre o que tinha acontecido na casa de festas após os pais saírem com Ana para o hospital. Como saiu do pelo salão em chamas depois que voltou para chamar Susana e falou do que se lembrava do momento do resgate. E falou do que aconteceu depois. Exceto do bombeiro. Alice deixaria para falar dele em outro momento. Um no qual ela não estivesse tão cansada e pudesse falar de maneira apropriada sobre a gentileza daquele bombeiro, que seria a melhor coisa que contaria sobre aquela longa noite.

NOTA: Domingo, dia 27 de janeiro de 2013 liguei a televisão e fui surpreendido com a notícia da tragédia na boate Kiss em Santa Maria/RS. Na ocasião, eu tinha terminado a metade do conto “A Noite do Baile” e a questão do conto se tratar de um baile e um incêndio me fez pensar se seria adequado publicá-lo. Porém, depois de alguns dias sem escrever, refletindo sobre o assunto vi que tratar sobre a segurança em boates e casas de festas era algo importante e bem-vindo, e não o fazer, depois de tudo o que aconteceu, seria o verdadeiro erro. Assim, respeitosamente dedico este conto a todas as vítimas e a seus familiares. Que Deus os proteja e lhes dê o devido consolo.

O Autor

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 11/02/2013
Reeditado em 11/02/2013
Código do texto: T4135134
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