O HOMEM DE CÓCORAS*

Das lembranças daquela viagem, a que mais o marcou foi uma cena hilária, da qual, de forma inusitada, volta-lhe às vezes, fazendo-o rir e o constrangendo por ambientes nem sempre apropriados.

Era dado a repentes inoportunos, gerando polêmicas e se expondo ao ridículo, como na inesperada pergunta levantada em sala de aula, no curso de Direito processual civil endereçada para o ilustre mestre, à época ainda um juiz recém promovido a desembargador, e culminando sua exitosa carreira se aposentando como ministro do STF. Naquela oportunidade, lutando contra o sono da quarta e derradeira aula noturna, dirigiu-se ao preceptor com uma questão tão distante do interesse da matéria quanto utilizar uma língua morta para expressar-se. Como a proferiu de forma solene, atraiu a atenção do interpelado e dos colegas, na bizarra questão: “Mestre, caso em uma audiência, o juiz for chamado de meretríssimo (em alusão a meretriz ou meretrício), ao invés de meritíssimo...” numa confusão verbal propositada e de controverso e estranho humor. Silêncio de incredulidade no ar, nos olhares a perplexidade geral, isso por que os colegas, à boca pequena, já não o levavam muito a sério, egresso que viera do curso de Ciências Sociais parecia um estranho no ninho.

Rememorando épocas, igual situação se verificara nos tempos do antigo ginásio, também no recinto escolar, diante às piscadelas nas lâmpadas fluorescentes a atrapalhar as explicações da professora de matemática, onde a mesma teria dito: “vocês precisam avisar a associação de pais e mestres...Quer dizer, de mães, porque os pais nunca aparecem...” Ao que respondeu inadvertidamente o insolente aluno: “Realmente, mestra, as mães tem mais facilidade em dar a luz” Em represália, posto fora de sala pela opinião infeliz proferida, mais uma vez traído pelas respostas disparadas sem prévia autocensura.

Assim, de forma espontânea, as tiradas cômicas e impertinentes o perseguiam, contendo-se às vezes de expressá-las, mas não conseguindo deter o seu riso inexplicável a quem o rodeasse, sem entender nada. Em locais os mais diversos acometia-lhe os ímpetos da sátira, como em uma reunião restrita de apoiadores de um deputado que confessava, convicto, de que nunca abusara de verba pública, que perderia o “saco” se tivesse mentindo...Imediatamente o intrigante e instigante cabo eleitoral retrucou jocoso a todos os presentes:“ vamos apoiar um eunuco...”

Ou a gafe de oferecer, no metrô lotado, a cadeira especial ( para idosos, gestantes, etc) a uma jovem próxima, que o aparteou furibunda: acaso você acha que eu tenho 60 anos ? Ao que respondeu sem titubear: - Só queria ser gentil, afinal as aparências se enganam... ( esquecendo-se de que três coisas são fulminantes ao público feminino: serem chamadas de feias, gordas, ou dar a elas uma idade superior a que tenham)

Voltemos à viagem. Resolvera que viajaria de ônibus de São Paulo a São Luiz do Maranhão, isso em 1980, portanto há mais de três décadas, sem os confortáveis transportes coletivos hoje existentes. Os veículos, lotados, saiam da baixada do Glicério, bairro central e pobre da Capital paulista. Lembrava o embarque da mitológica arca de Noé, migrantes de diferentes regiões em visita a parentes levando extensa carga de presentes, ou mesmo pequenas mudanças de desapontados com o fascínio da grande cidade. . Sentado à frente de uma moça esnobe que queria ser tratada como Mary Help, dizendo em alto e bom som de que só não estava a bordo de um avião por um incidente qualquer, fazendo questão de demonstrar seu desprezo pelos demais, reles mortais, sujeitos aos trancos e solavancos, e que por pirraça foi incomodada durante os três dias de aventuras estradas à fora, chamada por ele, insistentemente, e em mesma tonalidade de voz, como Maria do Socorro, insultando-a na pompa e pretensão de se envaidecer em língua inglesa, apesar do carregado sotaque regional brasileiro.

Iria ao encontro de um amigo de infância, morador da ilha desde que ele por lá passara acompanhando uma trupe teatral. O grupo de artistas passou, e ele, compreensivamente apaixonado pela cidade e futura esposa, fixou residência, onde posteriormente consorciou-se e teve um casal de filhos. Na ocasião da viagem o amigo ainda era solteiro, morando em uma república dando num beco onde nunca tinha visto tantas ratazanas tamanho família. Restaram reminiscências da beleza natural da capital maranhense, sua arquitetura lembrando o período colonial, além das praias belíssimas e da população acolhedora.

Dentro do ônibus abarrotado, até com crianças aproveitando os exíguos corredores para servirem de cama, a paz foi quebrada graças à indisposição digestiva de um dos passageiros. O fato deu-se em uma das paradas, onde o infortunado comeu um lanche de pão de alho e depositou o bolo fecal mal digerido horas depois no banheiro do veículo...

Próximo ao toalete, um senhor de traje jeans azul,calça e colete, de sandália e um chapéu coco, tipo cangaceiro, de couro, este lhe cobrindo o rosto para proteger-se da claridade e facilitando-lhe o sono. O passageiro, percebendo o incômodo do ar empesteado, franzindo as narinas, indignado, acordou de um salto querendo saber a origem da carniça.

Tiveram uma parada obrigatória para a lavagem e higienização da privada.

Na passagem pelo Piauí, no auge de uma seca que vitimava aquelas tórridas terras, viu um cão ser atropelado e, ainda estrebuchando, ser devorado por urubus esfomeados. O copo americano utilizado para tomar um refrigerante de cor translúcida estava marrom, tudo pela escassez de água.

Não viajou sozinho, foram em três. Um deles, baiano, fez questão de, no retorno, passarem em sua terra natal para visitarem seus velhos pais. Moradores da pequena localidade de Nazaré das Farinhas, onde hospedou-se na casa de parede rebocada de barro pintada de cal, sobre antigo terreno de um improvisado cemitério. Diziam tratar-se de uma peste que vitimou a cidade em anos passados, sendo necessário o improvisado depósito humano, dada a demanda superior à capacidade do campo santo oficial. O velho anfitrião paterno falava que, não raro, encontrava ossos no quintal, revolvidos pelas chuvas.

O fato que o marcou, todavia, deu-se no trajeto até a cidadela citada, feito de balsa. Necessitado de satisfazer suas necessidades fisiológicas, solicitou ao amigo soteropolitano, que, prontamente, dirigindo-se a uma das cabines, abriu um dos compartimentos, ficando de lado. Estes locais não dispunham de vasos sanitários, apenas de apoio aos pés, onde, agachado, fazia-se o uso do buraco no chão para escoar fezes e urinas, localizando-se de frente para as pessoas que aguardavam a travessia, observando o mar. Por imprudência do ocupante, o mictório estava com a porta destravada. Escancarada, revelou o inusitado de todos assistirem o indivíduo de cócoras aliviando-se na posição de defecar. E este, calças abaixadas, desprevenido, frente a frente com a platéia, ambos atônitos. O amigo anfitrião não percebeu o que sucedia, pois encontrava-se na lateral segurando a portinhola fazendo-lhe a simpática cortesia, sinalizando para que seu convidado adentrasse e fizesse o uso do local, desconhecendo de pronto a esdrúxula cena presenciada.

Impagável momento, que volta, vez ou outra, tirando-lhe risos insopitáveis e saudosos...

* Publicado em livro na antologia Contos Selecionados, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, maio de 2016.