Olavo da Penha Cazumbá (heterônimo)

 
Finalmente, pisei na ponte.
Só tinha conseguido vender o último quilo de mariscos há alguns minutos, lá na Rua Direta do Uruguai.
Já ouvia a ave-maria e já sentia o cheiro de café no casario sobre as águas.
Apertei o passo, ansioso.
Eu morava no final da ponte de Santa Luzia, a mais longa dos Alagados, defronte da enseada dos Tainheiros, que naquele tempo, final de 1949, era bem mais larga do que hoje.
Antes de chegar em casa, passei na venda de Seu Arnaldo, para comprar duas velas de cosme-e-damião, um pacote de café e um pedaço de fumo de rolo que mãe tinha mandado. A venda estava apinhada de gente comprando pão, o que era normal naquele horário. E eu apressado. Queria chegar logo.
Quando paguei, saí a mil. Fui correndo sobre a ponte já meio escura, apesar da lua cheia que despontava.
Ao pisar no pequeno tablado de acesso a nosso barraco, fui logo perguntando:
- Cadê ele? Já chegou?
- Não! – respondeu mãe. E me acelerou: - Entre e vá logo tomar banho, menino! Depois vista a roupa que tá em cima da sua cama e calce o Conga.
Entreguei as compras e o resto do dinheiro da vendagem, peguei um caneco de esmalte, corri pra detrás da cortina, onde já havia uma lata com água que mãe tinha mornado num fogareiro, tomei um banho bem rápido e me enxuguei às pressas.
Vesti uma camisa volta-ao-mundo e uma bermuda quadriculada que mãe tinha passado há poucos instantes com o ferro de engomar. Por fim, calcei o Conga Sete Vidas. Fiquei nos trinques, cheirando a sabonete Eucalol.
Pai acendeu as duas velas, para reforçar a iluminação do candeeiro, e foi cuidar das batatas-da-terra que cozinhavam em outro fogareiro.
 
Era meu avô por parte de pai que estava para chegar. Toda vez era a maior alegria quando ele nos visitava.
De hora em hora a gente espiava pela janela, pra ver se ele já vinha, até que, já de noite, ele apontou ao longe na maré, vindo da enseada dos Tainheiros, remando devagarinho a sua canoa.
Eu fui o primeiro a avistar:
- É o Vô Izidoro! É o Vô Izidoro! Já vi a canoa dele!
Corremos todos até a janela, no maior alvoroço. Apesar da escuridão, dava para ver que era ele, por causa do chapelão de palha que só ele usava e que estava se destacando sob o luar.
Ele veio se aproximando, por entre as fileiras de barracos, ladeando a ponte acima dele, até chegar aos pés da nossa morada.
Foi uma alegria só.
Ele atracou, arriou a poita dentro d’ água e gritou:
- Vamo, meu povo! Ajuda o véio que vem de longe! - A voz dele, grave e meio rouca, era inconfundível.
Pai o ajudou a subir, com cuidado, para ele não se ferir nas ostras incrustadas na escada rústica. A maré estava baixa. Foram uns seis degraus. E ele ainda trazia na mão um bocapiu cheio de frutas e verduras, como era de costume.
 
Todo mundo riu e falou alto durante o abraça-abraça. Vô Izidoro e pai, como sempre, fizeram várias pilhérias. Acabei me esquecendo de pedir a bênção, mas ninguém nem notou.
 
Os adultos sentaram nos três tamboretes que havia e eu sentei no tabuado mesmo.
Vô Izidoro pegou o cachimbo de dentro do bocapiu e mãe se apressou logo:
- Oi! Compramos aquele fumo que o senhor gosta, lá na venda de Seu Arnaldo. – e ordenou pra mim: Olavo! Pegue ali o pedaço de fumo de riba da cristaleira e dê pra seu avô.
Vô Izidoro falou sorrindo:
- Êta! É hoje que eu vou matar minha saudade do fumo de primeira!
E a prosa engrenou. Eles falaram de tanta coisa... Falaram do tempo, da política em Salvador, da segunda guerra mundial... Falaram dos riscos de desabamento dos barracos, do mau-cheiro, do lixo, da falta de saneamento básico na área, das espumas que infestavam a maré, provenientes de uma fábrica de óleo de mamona instalada no lado oposto da enseada... Por fim, lembraram da festa dos cem anos de nascimento de Rui Barbosa, que tinha acontecido há poucos dias. Mãe fez questão de relembrar os detalhes, quando ela e pai foram apreciar os desfiles comemorativos na Cidade Alta, ela toda garbosa, com seu vestido de chita estampado, e ele, todo acabrunhado, com sua roupa de ver-deus. Conseguiu quebrar o clima de seriedade.
Mas logo Vô Izidoro voltou a ficar sério e perguntou a pai:
- E entonce, João, tem trabalhado muito?
- Ultimamente não muito, meu pai. Tem uns quinze dias que eu finquei as palafitas de um barraco na nova invasão Vila Rui Barbosa, mas ainda não recebi. E também a concorrência é muito grande. Têm muitos fincadores... Também, por estes dias, não estamos podemos fincar nada, por causa da lua.
- E as novas fábricas que estão se instalando na península? Dizem que vão ser mais de vinte daqui a algum tempo...
- Também tô na espera. Compadre Jaime tá trabalhando de vigilante no Empório da Boa Viagem. Disse que vai me indicar.
- Tomara que Você consiga uma colocação fixa.
- Por enquanto, quem tá ajudando mais são os mariscos que nós catamos na maré...
- Nós, não! – mãe interrompeu sorrindo. – Mais eu, né?
- É. Você tem uma energia boa. Os mariscos parece que andam por debaixo da areia direto pra tuas mãos.
- E não se esqueçam de que eu ajudo vendendo... – reclamei eu minha parte.
- Bom, tenham bom ânimo! – disse Vô Izidoro. - Isso aqui... aliás, tudo no mundo tá pra melhorar muito. Há um ano, o rádio tem anunciado direto a lei chamada declaração universal dos direitos do homem e do cidadão, lá das Nações Unidas. Diz que é o maior acontecimento de todos os tempos e que vai mudar a história da humanidade.
- Eu também tenho ouvido muito falar dessa tal declaração. Mas já tem um ano que saiu e inté hoje, nada. Acho que isso é coisa pra valer mesmo só no futuro, daqui talvez uns sessenta anos, sei lá...
Mãe interrompeu a conversa:
- Ei! Tá na hora de eu botar o café no fogo!
Foi um breque oportuno. Todo mundo rio, como que aliviado do peso do assunto. E ninguém falou mais de nada sério; somente palhadas e outros assuntos leves.
Mãe levantou, encheu o bule com água do pote, atiçou o carvão ainda aceso em um fogareiro e botou a água pra ferver.
Pai tirou as batatas do outro fogareiro e botou pra esfriar.
Houve uma breve pausa. Aproveitei para pedir a Vô Izidoro:
- Vô, conte uma história pra gente...
Pronto! Parece que ele estava esperando esse pedido. Era o que ele mais gostava de atender. Vô Izidoro era bom de contar histórias. Um mágico das palavras. Fazia gestos e cantava e nos assustava e ria e chorava... Era um ator natural. Conseguia nos levar rapidamente para dentro de cada aventura. Quem precisava de mais literatura? E contou primeiro uma das histórias que eu mais apreciava: a de Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Até pai e mãe sentaram para ouvir, embora já conhecessem a história de cor. E depois, como não podia deixar de ser, contou uma lenda africana – desta vez, a história do peixe grande. Disso ele não abria mão. Tínhamos que ouvir algo vindo da África.
Quando o café chegou, bem cheirozinho, Vô Izidoro interrompeu a contação e declarou solenemente:
- Deveria ter na tal declaração o seguinte: “Todo cidadão tem direito a tomar o melhor café da hora, feito por Zeferina, minha nora”. – Foi uma gargalhada geral.
Depois das histórias, jantamos. Após um breve descanso e umas baforadas de Vô Izidoro, mãe pediu:
- Seu Izidoro, agora vamo brincar um sambinha pra variar?
Oxente! Todo mundo aceitou na hora. Já era normal. Era como se fosse um chamado para espairecer as ideias e entrar em outro vão de realidade.
Pai correu no quarto e voltou com a viola e com o velho tambor chamado batacotô, que Vô Izidoro afirmava ter sido construído pelo avô dele e usado durante revoltas de escravos, há mais de cem anos.
Pai afinou a viola. Vô Izidoro limpou a poeira do batacotô. E a função teve começo.
Pai cantava e tocava um samba alegre, vô Izidoro cantava e batucava outro mais alegre ainda. E era samba de roda, samba de caboclo, samba duro, samba de viola...
Mãe sambava no ritmo, suave, harmoniosa. Eu saltava sobre o tabuado, na maior algazarra.
Não tardou e chegaram convidados. É que o batuque foi ouvido em vários barracos, até de pontes distantes.
Os primeiros a aparecerem na janela foram seu Tiago Pintor, com um cavaquinho, e dona Zefa Costureira, a esposa dele, que era conhecida sambadora. Vieram da ponte da Belamita.
Pai abriu a porta e pediu pra eles entrarem logo no samba.
Demorou um instante e chegaram mais três vizinhos e com eles um atabaque, um pandeiro e mais uma viola. E o samba se animou mais ainda.
Perto da meia-noite, as velas derretidas por completo, mãe acendeu a carocha usada na mariscada. As faces negro-africanas de Vô Izidoro e de pai agora pareciam minicéus cheios de estrelinhas brilhantes (por causa do suor e do ambiente mais bem alumiado).
 
O samba prosseguiu até de madrugada. Ninguém se cansou. Todo mundo estava extasiado pelos ritmos fortes que se sucediam, reforçados pela reverberação surda que o tabuado fazia sob nossas pisadas.
Até Vô Izidoro tinha dançado um pouquinho de samba duro. Abrimos mais a roda e ficamos maravilhados com o molejo que ele ainda exibia com seus quase setenta anos.
 
Foi a visita do meu avô que mais marcou minhas lembranças de menino, uma das últimas.
De manhã cedo, ele desatracou a canoa e se afastou acenando para nós, escoltado por alguns cardumes de carapebas e carapicuns. Foi-se embora vagarosamente... em meio às espumas... junto com a maré que fluía vazando.
E meus olhos ficaram marejados. Por que é que ele tinha de ir-se embora? Por que ele não morava com a gente? Eu testemunhava muitos meninos nos Alagados com seus avôs e avós morando juntos. Eu era dos que não tinham. Eu só tinha nove anos de idade e ainda não tinha ideia do porquê das perdas e ausências da vida.
Bem, pelo menos ninguém tinha um avô tão alegre como Vô Izidoro. Isso me compensava.
 
****
 
Cresci, estudei, trabalhei, casei, tive filho, enviuvei, e olha só o que é a vida. Agora, num fim de tarde de domingo, eu estava ali, no mesmo lugar onde nascera, sessenta anos depois, para visitar familiares, estando eu mesmo na condição de avô.
Tudo tinha mudado desde a última vez em que estive ali, há pouco mais de dois anos. Agora, nos idos de 2009, algumas poucas palafitas ainda resistiam em Itapagipe, bem no finzinho da Madragoa, já nas proximidades da Ribeira. Nos bairros do Uruguai, Jardim Cruzeiro e Massaranduba não havia mais um barraco sequer em cima d’ água. Estava tudo aterrado, com várias ruas pavimentadas e iluminadas. Não havia mais as dificuldades habitacionais doutrora. Enfim, não havia mais Alagados, a não ser na lembrança dos ex-palafiteiros e dentro da minha memória calejada. Como deviam estar felizes os moradores!
 
Eu não reconhecia nada. Tive que perguntar a um e a outro onde era a casa de Jurandi, meu neto.
Depois de uma meia hora, ainda antes do sol se pôr, cheguei ao apartamento onde ele e a esposa moravam, em Novos Alagados, um conjunto habitacional que se erguera nas cercanias.
Quem me recebeu foi Gisele, minha nora-neta.
- E aí, seu Olavo? Chegue à frente.
- Dá licença! – entrei.
Jurandi apareceu e disse:
- Ó, meu avô! Há quanto tempo! – E apertou minha mão. – Sente-se aí. Vá conversando um pouco com Gisele, que eu estou só terminando de assistir à final do campeonato paulista e logo darei atenção ao senhor. - E virou-se para a televisão que estava na sala.
Gisele terminou de atender ao telefone celular e também solicitou logo:
- O senhor me dá licença? Preciso ir agora ao salão de beleza, pra retocar minha trançagem, porque lá daqui a pouco vai se encher de freguesas. É que amanhã vai ter um samba-reggae no largo da Ribeira, e eu quero ir toda produzida. – Disse “tchau” sorrindo e saiu quase na carreira.
Fiquei ali no sofá, esperando. E enquanto esperava, assisti a meu neto suar, gritar, espumar, fumar um cigarro após o outro, enquanto torcia freneticamente pelo time do Corinthians, extasiado.
 
Quando acabou o jogo, ele se voltou para mim:
- E então, meu avô, o que é que manda?
- Bem, eu só vim aqui visitar vocês, saber o que é que há de novo...
- As novidades, o senhor já viu, né? Mudamos para este conjunto. As palafitas não existem mais. Não tenho a mínima saudade daquela vida miserável e nojenta. Agora temos conforto, saneamento básico, carro parando na porta...
- Mas quando foi que vocês mudaram?
- Já tem mais de um ano. Deixamos tudo pra trás. Compramos até móveis novos. Nossa meta agora é comprar um computador...
- Mas... vocês se desfizeram mesmo de tudo que havia no barraco?
- Sim. Pra que trazer caco velho pra casa nova? Isso chama atraso! Não queremos remar na contramaré dos novos tempos.
- E aquele batacotô que eu ensinei seu pai a batucar nele?
- Ah! Aquele tamborzão? Oh, meu avô! Aqui na nossa nova morada não deu pra ele ficar, não. Ele era muito pesado e volumoso.
- Mas... e pra onde vocês levaram ele? - perguntei já apreensivo.
- Como painho já tinha morrido há alguns anos, resolvemos jogar tudo que era dele dentro da maré. Também já não dava mais pra batucar naquele instrumento. Estava muito velho.
Fiquei estarrecido. Meu antigo tambor, que eu tinha ganho de herança e que houvera deixado para meu filho, agora no fundo da maré...
Gaguejei umas duas palavras, me despedi cabisbaixo e saí. Diante das circunstâncias, não havia declaração a fazer. Há muito eu já tinha ideia de perdas e ausências, mas essa me pegou de jeito. Tentei entender que era eu que talvez estivesse na contramaré da história.
 
A noite chegou sem qualquer ave-maria, mesmo porque nada seria ouvido nas redondezas, em função de uma musicaria eletrônica que berrava no fundo de um carro.
Antes de ir para o ponto de ônibus, resolvi olhar, talvez pela última vez, o restinho da maré que ainda havia. Alguns poucos barcos balançavam suavemente na marejada. Ali eu passei a maior parte da minha vida. Nenhum outro sinal físico restou para me fazer lembrar e sonhar com os meus bons tempos, a não ser agora a lua cheia que apontava no horizonte.
Olhei na direção da enseada dos Tainheiros, quem sabe numa última esperança de ver Vô Izidoro se aproximar, remando devagarinho... com seu chapelão de palha... trazendo sua carga de alegria para todos nós.
Bem, foi só um restinho de sonho. Despertei logo. Fui-me embora.
 
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 22/11/2012
Reeditado em 02/11/2013
Código do texto: T3998767
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