Cine Paixão de Cristo 
 
O automóvel emprestado dançava para lá e para cá na estrada estreita e barrenta, desafiando a habilidade do motorista. A chuva não dava trégua e a noite era de breu. Felizmente atoleiro não havia. Chegamos sãos e salvos ao rancho de chão batido à beira da estradinha. Não sei quantas pessoas em volta do fogão fumacento.
 
Não houve tempo para muita coisa. Recomendações do pai, palavras de consolo e esperança da mãe. A bênção dos dois. A Maria embarcou conosco no carro preto, carregando sua trouxa de poucas roupas. Novamente no caminho que ora rasgava o mato, ora serpenteava nos campos.
 
Na estrada principal, de macadame, risco de encalhar não havia mais. Entretanto, o Chevrolezão começou a cobrar o esforço exagerado a que fora submetido. O motor tossia, ameaçando morrer. Paramos defronte ao que parecia ser um armazém. Tarde da noite, começo de madrugada. Depois do terceiro toque de buzina, um homem abriu a janela. O motorista perguntou se ele sabia de algum mecânico por perto.
 
- A esta hora? Nem pensar.
 
Seguimos em frente. O motor foi melhorando. Consertou-se sozinho. Talvez sujeira no carburador. Alguém deve ter ficado com pena da gente e fez o carro andar direito.
 
Não dava para devolver o veículo ao dono, sujo como estava. Lama por baixo e por cima. Ficou num posto para lavar. Combinaram com o guardião que seria retirado logo após a primeira hora de expediente. Ele que avisasse o lavador. Tomamos um carro de praça direto para casa. A Maria estava com sorte. Nunca havia andado de carro e, na primeira vez, pegou dois.
 
A menina veio para ser babá do meu primeiro sobrinho. Jamais estivera na cidade antes. Radiante nos seus dezesseis anos. Tudo era novidade e facilmente qualquer coisa enchia seus olhos de satisfação. Admirada com o acampamento cigano que fez escala no bairro por uns tempos. Encantou-se com um jogo de agulhas de todos os tamanhos que eles vendiam presas a uma cartela imitando uma cesta colorida. Os tachos de cobre ela conhecia, só não sabia que eram os ciganos que fabricavam.
 
Certo dia uma ciganinha deixou o acampamento e veio brincar com nossa turma no quintal da minha casa. Não sei por qual razão, ela tinha o cabelo raspado. Por isso duvidamos que fosse mesmo uma menina.
 
- Você é guri vestido de menina - uma das crianças questionou.
 
A ciganinha nem pestanejou. Ergueu a saia e, sem calcinha, mostrou o púbis lisinho, desfalcado da torneirinha dos machinhos.
 
- Acreditam agora? Sou menina sim.
 
A Maria, que espiava de longe, arregalou os olhos de pavor. Que vergonha! Aqui as meninas mostram tudo para os meninos! Deve ter pensado, sem saber que se tratava de uma situação atípica e inesperada.
 
Apavoradas mesmo ficaram minha irmã e minha mãe quando descobriram que a Maria estava infestada de piolhos.
 
- Meu Deus! Vai passar para o nenê! Será que já não passou?
 
Começou o tratamento. Banho disso e daquilo. Compraram pente fino e colocaram a Maria no paiol. De vez em quando eu ia sondá-la da porta. Ela, ajoelhada sobre folhas de jornal, passava repetidas vezes o pente fino na vasta cabeleira negra e lisa. As lêndeas iam caindo e forrando de branco o jornal. A Maria ria quando me via. Não sei se por achar engraçado o ritual ou de felicidade por se livrar dos parasitos.
 
Na Sexta-Feira Santa, minha mãe quis nos presentear com uma sessão de cinema. No recém-inaugurado Cine Flórida, na Rua Marechal Floriano, estava passando um filme sobre a Paixão de Cristo.
 
- Vão se educar um pouco - disse a minha mãe para mim e para a Maria. É fácil chegar lá. Peguem o ônibus aqui em frente e peçam para o motorista parar no Cine Flórida. Depois da matinê tomem o ônibus de volta, perguntando antes de entrar se é do Pilarzinho. Não pode ser do Bom Retiro nem outro qualquer. Muito fácil.
 
O grau de confiança e otimismo da minha mãe era fora de série. Porém, achar que essa empreitada seria coroada de pleno êxito, levando-se em conta que os executores e, ao mesmo tempo, beneficiados seriam um petiz que mal iniciara a vida escolar e, portanto, ainda não sabia juntar as letras, e uma adolescente completamente analfabeta, era exagerar na dose.
 
A Maria, como era mais velha, ficou como guardiã do dinheiro. Entramos no coletivo, ela pagou, passamos a roleta e tratamos de ir conversar com o motorista, conforme minha mãe havia recomendado. Todavia, ao tentar explicar onde queríamos saltar, confundimos tudo. Para piorar, ele ainda não conhecia o novo cinema. Ou pelo menos não se lembrava. E nós esquecemos o nome.
 
Falamos quase ao mesmo tempo:
 
- O senhor pode avisar quando chegarmos ao cine Paixão de Cristo?
 
- Não conheço nenhum cinema com este nome.
 
- É novo...
 
- Mas é um nome esquisito para um cinema. Será que vocês não estão querendo assistir à Paixão de Cristo?
 
- Isso mesmo. Vamos ao cinema assistir à Paixão de Cristo.
 
- Mas não é no cinema que está passando.
 
- Não?!
 
- A Paixão de Cristo está sendo encenada no circo.
 
- No circo?!
 
- É como no teatro.
 
- Então é isso mesmo. Avisa quando a gente chegar.
 
Sem que o motorista notasse, e nós muito menos, passamos pelo Cine Flórida, na Marechal Floriano, e, quase no ponto final da linha, no Prado Velho, chegamos ao Circo Irmãos Queirolo, que exibia a peça Paixão de Cristo.
 
Saltamos, atravessamos a rua sob chuva. Na bilheteria, a Maria comprou os ingressos. Avisaram que o teatro estava começando. Corremos para a entrada.
 
- O ingresso, por favor - pediu o porteiro.
 
- Está com ela - eu disse, indicando a Maria, que vinha logo atrás e já ia entrando.
 
- Os ingressos - repetiu o porteiro, dirigindo-se a ela.
 
- O que é que é isso? - perguntou a Maria.
 
O porteiro mostrou um que tinha na mão. A Maria, apontando para a bilheteria, voltou a perguntar:
 
- Os papeizinhos que me deram ali naquele buraco? Joguei fora. Vou juntar ali na poça d’água.
 
Acho que o homem logo percebeu com quem estava lidando e resolveu não perder mais tempo. Com um sorriso maroto franqueou a entrada.
 
Não me recordo como foi a volta para casa. Mas o fato é que chegamos. Acredito que demos sorte em pegar o ônibus correto. Se tivéssemos errado, corrigir o erro seria impossível e eu lembrar-me-ia dele pelo resto da vida.

Embora a tarefa tenha sido atribulada na execução, o objetivo fora atingido. Assistimos uma encenação da Paixão de Cristo, apesar de não ter sido no cinema. E, para corroborar a confiança em nós depositada pela minha mãe e seu elevado espírito de otimismo, fomos e voltamos intactos, sem que nada de mal tenha colocado em risco nossa integridade física ou psicológica. Retornamos mais felizes que nunca.
 
Alguns meses depois, minha irmã, que morava conosco, mudou-se para a casa dela num bairro distante, do outro lado da cidade. Não demorou muito para a Maria descobrir o quartel do Exército que ficava no caminho. Fascinada com os soldadinhos no uniforme verde oliva, passou a dar plantões defronte a unidade sempre que podia. Após ter sido flagrada, meu cunhado tratou de devolvê-la aos seus pais e irmãos, antes que ela viesse a lhe causar maiores dores de cabeça e a tempo de evitar que conseguisse por em prática o seu plano audacioso de namorar o regimento inteiro.


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N. do A. - Na ilustração, luminoso da entrada do Circo Irmãos Queirolo que durante décadas levou alegria e cultura para várias regiões do Paraná, notadamente Curitiba. No picadeiro, as atrações circenses tradicionais intercaladas com o humor impagável do palhaço Chic-Chic. No palco, peças teatrais adaptadas para o ambiente, como O Direito de Nascer, comédias com Chic-Chic no papel central e, na Semana Santa, a imperdível Paixão de Cristo, encenação que propiciou o meu primeiro contato com o glorioso circo-teatro, dos muitos que vieram posteriormente, sobretudo quando sua lona era armada no meu bairro, então parte do Pilarzinho e que hoje integra o Bom Retiro.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 09/11/2012
Reeditado em 24/09/2020
Código do texto: T3976591
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