O meu tio e um outro sobrinho
 
Depois de sessenta e seis anos de funcionamento no mesmo local, o Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, que deu nome ao bairro onde eu moro, está sendo transferido para outro endereço, em outro bairro. O atual terreno foi negociado com uma incorporadora, que deve erigir ali um empreendimento comercial. Oxalá seja preservada a imensa área verde com espécies nativas, inclusive araucárias, que adorna a propriedade.
 
Muitas histórias de fé e amor, cura ou conforto desenrolaram-se nas antigas instalações do Bom Retiro. Outras engraçadas, como a que foi protagonizada por um dos meus queridos e amados tios.
 
Esse irmão do meu pai tinha problemas com a bebida. Como andava exagerando, a família aceitou o auxílio de um sobrinho por afinidade dele e direto da minha tia - para ele, esposa dedicada e para mim uma doce lembrança - a fim de interná-lo para tratamento no Bom Retiro, na ala dos alcoólicos.
 
O rapaz, imbuído de boa vontade e das melhores intenções, conseguiu levá-lo até lá, usando não sei de qual artifício. Quando percebeu a artimanha, meu tio ficou muito contrariado, mas calou-se diante do fato irreversível. O moço despediu-se e foi embora.
 
Não sabia ele, entretanto, que o meu tio era cria da região e a conhecia como a palma da mão. Além disso, era muito esperto e sabia lidar com situações desfavoráveis.
 
Com habitual fala mansa e simpatia para dar e vender, de imediato cativou a confiança do pessoal do hospital. Enquanto a turma se distraía dispensando cuidados aos outros, meu tio foi se esgueirando pelos corredores até alcançar a área externa e o bosque nativo. Daí foi moleza. Com muita tranquilidade cruzou o mato, com tempo para admirar os pinheiros, pulou o muro baixinho e ganhou a rua lateral.
 
O sobrinho, depois de alguns afazeres, apressou-se em ir contar para a família como tinha sido a internação e o suposto sucesso da empreitada. Todavia ficou pasmo quando na casa encontrou o meu tio todo prosa e faceiro, já de volta. Mas com uma terrível vontade de lhe aplicar umas boas bengaladas. 

 
Tomo umas pingas,
falo besteira;
brigo com filhos,
xingo a patroa
e ela me xinga.
 
Na mesa verde,
pra distrair,
eu gasto as horas
jogando cartas,
matando a sede.
 
Estou demais!
 
Passei da conta,
ninguém me aguenta.
 
Pedem socorro
a homem sagaz:
um moço esperto
que bem ligeiro
quis me trancar
no sanatório
aqui bem perto.
 
Junto com loucos
não quis ficar;
entrei na frente,
saí nos fundos
andando um pouco.
 
E o esperto era ele!
 
Não gostei nada
do atrevimento;
o fogo da ira
ponho ao pavio.
Ainda eu racho,
sem pena dele,
com a bengala
de pau o seu
crânio vazio.
 
De tanto medo,
nesse entrevero
perdeu a fala...
 
Que belo sonso!
 
Se eu fosse bobo,
não me chamava
Eduardo; muito
menos Afonso.
 
 
_______
N. do A. – Na ilustração, o Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, mantido pela Federação Espírita do Paraná, em Curitiba -  PR, no antigo endereço..
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 25/09/2012
Reeditado em 27/01/2022
Código do texto: T3899955
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.