Quem mexeu no nosso álcool?
No Juruqui poucos homens eram páreo para a dona Palmira no trabalho e nas lidas da roça. Tanto na capina, quanto no roçado, na plantação ou nos cuidados com os animais, muito macho perdia para ela no capricho e no ritmo do serviço. Alguns não mereciam nem entrar na comparação.
Durante vários anos ela trabalhou como diarista na chácara que eu e o Pedroair José Buest mantínhamos em sociedade, na fase da ovinocultura. Plantava e semeava pasto, capinava o milho, consertava cercas.
Na estação da tosquia, que não podia atrasar nem adiantar demais, todos os anos tínhamos de buscar gente de fora para tirar a lã das ovelhas. Era sempre uma dificuldade enorme encontrar bons tosquiadores.
Uma vez o Damasceno Ribas, conhecido fazendeiro na região de Ponta Grossa, arranjou um grupo de uruguaios e com ele percorria as chácaras e fazendas empreitando o serviço, mesmo longe da sua sede. Pois um dos rapazes do grupo enjeitou a tosquia na nossa chácara com medo de pegar sarna de algumas ovelhas que importamos do Rio Grande do Sul e que chegaram infestadas com o ácaro. O banho curativo e profilático somente seria dado no rebanho depois de ele estar totalmente deslanado, para garantir a eficácia do produto. Portanto, a tosquia precisava ser feita mesmo nos animais afetados.
Desconhecendo que a sarna ovina não passa para os humanos porque é de outra espécie, o jovem insistiu que uma ocasião já tinha sido infestado. Os companheiros confirmaram que de fato ele sofrera forte infestação no púbis. Contaram que, desesperado e querendo acabar logo com o incômodo, o incauto encharcou os pentelhos com álcool. O inflamável antisséptico, em contato com a pele irritada, como não poderia ser diferente, provocou enorme calor e insuportável ardência nas partes baixas do uruguaio. Feito cavalo chucro tentando livrar-se do laço, ele saiu em disparada, nu da cintura para baixo, corcoveando e gritando, até perder o rumo nos campos da invernada.
Sem dúvida ele não fora acometido pela sarna ovina, mas provavelmente por certo inseto parasita que se incrusta naquela parte da anatomia humana e se apanha de outra forma, em outros lugares e de outra pessoa, em eventual relacionamento íntimo.
Apostando na capacidade da nossa diarista, um ano pedimos que ela acompanhasse o trabalho dos tosquiadores para aprender. Assimilou direitinho. Nunca mais precisamos recorrer a tosadores de fora. Ela dava conta do serviço sozinha. Manietava os animais e passava a tesoura com maestria, tirando os velos inteiros. Não posso afirmar que a dona Palmira tenha sido a única tosquiadora do mundo, mas foi a única que eu conheci. E de qualidade incontestável.
Na caixa de remédios, curativos, seringas e apetrechos em geral, que deixávamos guardada no paiol, cuidávamos que houvesse sempre uma garrafa de álcool. Usávamos frequentemente como desinfetante na assepsia dos bichos medicados e esterilização do material e instrumentos de trabalho. Não devia faltar nunca.
No entanto, um dia faltou. Perguntei à caseira se havia usado o álcool, pois a garrafa estava praticamente vazia.
- Não usei não. Foi a dona Palmira que bebeu.
- A dona Palmira bebe?
- Às vezes se põe a beber. Não sei o que dá nela, mas que bebe, bebe.
- Álcool?!!
- O que tiver. Não tendo outra coisa, vai álcool mesmo. Mistura com água.
Aquele sábado a dona Palmira não tinha ido trabalhar. E, segundo a caseira, só aparecera no início da semana. Acabou com o álcool e não foi mais.
Quando saímos da chácara, passamos na casa dela para acertar a semana e saber o que tinha acontecido. Disse que tivera alguns problemas em casa, mas que na segunda-feira iria pegar firme. O cheiro de cachaça era evidente. Articulava as palavras com alguma dificuldade, tentando disfarçar. Dona Palmira tinha bebido.
Na semana seguinte trabalhou como sempre. A crise do momento havia passado. Depois vieram outras. Mas do nosso álcool não bebeu mais. Para evitar que ela caísse em tentação, as garrafas iam e voltavam conosco.
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N. do A. - Na ilustração, Suzanne Valadon por Henri de Toulouse-Lautrec.