Matilde, a Robusta

Elegante, de saia branca e blusa azul, lá estava ela quase em frente ao motel, na Rodovia dos Minérios. Parecia que me esperava. Ou outro, não sei. Segui em frente. Não resisti, voltei. Parei. Olhei bem, estacionei. Desci.

Colado no para-brisa, o anúncio: Vende-se. Perguntei na borracharia ao lado do motel. Era do borracheiro. Um senhor falante, bom de conversa e de venda. Indaguei do preço. Fiquei interessado.

Contei para o Pedroair José Buest, meu sócio na chácara. Assim que pode, ele foi sozinho conhecê-la. Voltou bem impressionado. O seu Renê sabia vender o peixe:

- Isso é carro para levar a mulher no cinema...

Escolados com a Gerimunda, a Kombi das 1200 cilindradas, levamos o Fiori, um mecânico experiente, para exame mais apurado. Saímos os quatro: eu, o Pedroair, o seu Renê e o Fiori na boleia. Deixamos o asfalto, pegamos terra e subida íngreme. Tração nas quatro rodas, marcha reduzida, tudo funcionando. Queimava um pouco de óleo, mas aquele motor, garantiu o mecânico, ainda iria muito longe.

Sem pressa, eu e o sócio deixamos para confabular e resolver o assunto a sós. No dia seguinte fomos buscá-la.

- Então vamos buscar a Matilde - disse o Pedroair.

- Matilde? Gostei, vamos lá.

Eu conduzindo a Ford Rural, ano 1974, e o Pedroair no carro dele, atrás. Caminho da chácara. Na estrada de terra um pequeno solavanco ao passar sobre um buraco fez a tampa traseira, que estava mal fechada, abrir-se violentamente. Parei para fechá-la.

O Pedroair também parou e desembarcou. Constatamos que, com o impacto, uma das correntes laterais que prendia a tampa à carroceria havia-se partido. Não esqueço a cara de tristeza dele. A minha não pude ver.

- O primeiro dano - disse ele choramingando.

Agora estávamos no outro extremo. Depois da fraqueza e manhas da Gerimunda, tínhamos a robustez e valentia da Matilde, que enfrentava qualquer obstáculo sem perder a pose.

Mas uma noite ela nos fez ver que mesmo as robustas gostam de amor e carinho. E que sucumbem ou castigam quando são abusadas ou desrespeitadas nos seus limites.

Quase uma semana de chuva. As estradas estavam lamacentas. Carregamos a Matilde e rumamos para o Dinho Meger, nosso atacadista, entregar as verduras, que no dia seguinte iam para a CEASA, juntamente com a produção de outros agricultores da região. Eu dirigindo e a robusta Rural não dando bola para o barro. A subida de São Miguel ela tirou de letra, com reduzida e tração nas quatro rodas acionadas. Ia que ia.

Entramos na estrada de macadame e saibro da Colônia Lamenha Grande achando que o pior tinha ficado para trás. Uma via muito boa para os padrões da localidade, por onde trafegava o ônibus. Menos naquele dia.

Em determinado trecho percebi adiante, à luz dos faróis, um barral que se estendia por uns quinze metros. Parei, engatei a reduzida e a tração nas quatro rodas.

- Matilde, agora é com você. Vou tentar mantê-la nos trilhos, mas com esta folga na direção não vai ser fácil. Dê tudo que puder, menina - pedi a ela.

Entramos no barro dançando, já fora dos trilhos. Não deu para segurar. Poucos metros depois as quatro rodas afundaram até os eixos.

Tentei marcha à ré. Para frente de novo. Mais uma vez à ré. Para diante. Nada. O carro nem se mexia, pesado e completamente atolado no lamaçal.

Descemos sob a chuva fina, para examinar e situação e pensar no que fazer. Um grupo de evangélicos, homens, mulheres e crianças, passavam por nós, escolhendo o caminho, para ir ao culto na igreja próxima.

- Hoje muitos encalharam aqui. Nem o ônibus está passando - disse um deles, sem parar.

Precisávamos de uma pá. A solução era cavar para desatolar e sair de ré. Mas não tínhamos ferramenta alguma. Peguei o guarda-chuva e voltei na estrada, até a casa de um empregado nosso, ali perto. Emprestei uma pá. Eu e o Pedroair nos revezávamos no cabo de madeira dura. Muitos pecados nossos foram pagos nessa empreitada. Só nós dois. Ninguém mais apareceu, além dos crentes. Fazia falta um trator, mas por ali não conhecíamos ninguém que tivesse um.  Continuar cavando mostrava-se a única alternativa viável.

Não sei quanto tempo dura um culto evangélico. Mas quando já havíamos cavado bastante para livrar tanto quanto possível os eixos, os crentes reapareceram, fazendo o caminho inverso.

Aproveitamos a turma. Já haviam se encontrado com Deus, estavam abençoados e tonificados. Sujar um pouco as roupas e os sapatos seria apenas uma penitência a mais a lhes garantir a entrada no paraíso. Com boa vontade e alegria, os homens entregaram as Bíblias para as mulheres e junto com o Pedroair posicionaram-se na frente e nos lado da Matilde, com as mãos onde dava e prontos para empurrar. Dei partida, mantive a reduzida e a tração nas quatro rodas acionadas e engatei marcha à ré.

- Matilde, desculpe. Eu prometo não fazer mais isso com você. Vou até lhe dar dois pneus novos, ou recauchutados. Vamos sair daqui - resmunguei.

Com fé em Deus, pé na tábua, e a força dos crentes purificados, finalmente saímos do atoleiro.

Agradecemos aos evangélicos com farta distribuição de verduras. O Pedroair tomou o volante e seguimos pela estrada, na direção contrária à da vinda, para encontrar o asfalto da Rodovia dos Minérios, em Almirante Tamandaré. Até a casa do Dinho o percurso foi aumentado em quatro ou cinco vezes. Talvez mais.

Quando chegamos, o homem já estava dormindo. Apareceu na janela para avisar que a mulher do Pedroair havia telefonado e estava muito preocupada com o atraso. Descarregamos no jardim e fomos embora.

Após mudarmos de ramo, abandonando a olericultura para entrar na ovinocultura, a Matilde foi usada algumas vezes no transporte de ovelhas e carneiros. Judiação. Os bichos não respeitavam o ambiente. Mijavam e cagavam sem parar, além de fungar no nosso cangote o tempo todo. Limpar aquilo depois é que eram elas.

Com o passar dos anos, a Matilde foi ficando mais velhinha, lataria meio enferrujada e já não era tão necessária na chácara, a não ser para carregar sacos de farelo, o que podíamos fazer com nossos carros de passeio. Entretanto, a valentia ela não perdeu jamais. Mesmo queimando óleo grosso, tempo ruim para ela não existia, desde que o motorista tivesse bom senso e não a jogasse num charco, como daquela vez na Lamenha Grande.

Um dia tocaram a campainha. Um homem queria saber se a Rural, estacionada em frente de casa, estava à venda. Pode ser, respondi. Conversei com o Pedroair. Decidimos vender.

O comprador explicou que tinha um sítio no litoral, ao pé da serra. Chegar lá com a sua picape de tração simples nem sempre era possível. Estava comprando a Matilde para deixá-la estacionada em um armazém na beira da estrada. Quando fosse ao sítio, deixaria a picape e faria o trajeto restante com a Rural.

E assim a Matilde partiu, levada para outras paragens serra abaixo. Deixou apenas o banco traseiro esquecido na garagem do meu sogro e saudade. Muita saudade. Como daquela manhã de domingo ensolarada, em que eu, o Pedroair, as meninas dele, Deise e Débora, e meu filho Alexandre, fomos prestigiar uma festa de igreja na colônia. Seguimos até lá com as crianças se divertindo na viagem, assistimos ao final da missa, batemos papo com a polacada e aproveitamos para comprar o almoço. Uma galinha recheada para cada família. Baitas e douradas de fazer gosto, assadas em forno a lenha.

Passeio concluído, a Matilde ficou lá em casa, como sempre. O Pedroair foi para a dele com as filhas e a sua galinha dourada. E muita água na boca só de imaginar o prato principal no centro da mesa de domingo.

No entanto, logo descobrimos que compramos as galinhas mais duras do mundo! Os colonos sovinas doaram para a festa as penosas mais velhas que tinham nas chácaras. Difícil de cortar e impossível mastigar. Quebra queixo como nunca vi. Ainda bem que tinha maionese e arroz de forno...

Não dando para comer, foram deixadas de lado as galinhas recheadas do almoço de domingo. Na minha casa e na do Pedroair também.

Porém, muito melhor do que qualquer refeição foi o sabor impagável e inesquecível da risonha algazarra e deslumbrado contentamento das crianças no passeio colonial com a Matilde. Na manhã encantada de um domingo azul.


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N. do A. (1) - Dedico este texto às crianças de ontem, Deise Cristina, Débora Cristina e César Alexandre, que amaram os bons momentos vividos com a Matilde tanto quanto eu e o Pedroair.

N. do A. (2) - Na ilustração, imagem de um exemplar da Ford Rural, ano 1974, encontrada na Internet.
 
 
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 12/07/2012
Reeditado em 13/08/2020
Código do texto: T3773872
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