Nicanor caiu de bicicleta

Era a terceira ou quarta vez que chegávamos à chácara e encontrávamos o Nicanor com a cara quebrada.

- O que foi isso, Nicanor?

- Caí de bicicleta.

- De novo?!

- Estrada muito ruim, cheia de pedras. De noite é difícil desviar.

Mais tarde comentei o episódio com a Dona Palmira, uma vizinha a quem recorríamos para trabalhos gerais na chácara como diarista.

- O Nicanor está machucado, Dona Palmira. Tombo de bicicleta de novo.

- Não foi tombo não. Apanhou no bar.

- Mas nas outras vezes tinha caído...

- Só uma. O resto foi surra mesmo. Boca suja, quando bebe. Tem gente que não gosta. Volta e meia tiram ele do bar a tapas.

Esse era o Nicanor. Um caboclinho franzino que trabalhava como coletor na companhia contratada pela prefeitura, para coleta de lixo na cidade. Corria quilômetros por dia, acompanhando o caminhão. Morava na chácara. A mulher era oficialmente a caseira. Ganhavam moradia e uma sortida e generosa cesta de alimentos para passar o mês. Obrigação única: soltar as ovelhas de manhã para o campo e, à tardinha, abrir a porta do aprisco, depois de deitar farelo nos cochos. Quando um ou outro trabalhava para nós, ganhava pelo serviço. Coisa rara, pela falta de habilidade dos dois e aversão ao aprendizado. Por isso, tínhamos a Dona Palmira.

Uma tarde, chuva muito forte. A água descia pelo Passaúna e seus afluentes inundando as baixadas. Pertinho do bar, espremia-se para atravessar a rua através de uma tubulação de concreto com um metro de diâmetro. Alagava os dois lados, a montante e a jusante, faltando pouco para cobrir a via. Dentro dos tubos, corria com pressão capaz de girar uma turbina.

O Nicanor, voltando do trabalho, foi bater ponto no bar. Umas e outras pela goela abaixo e começou com as provocações e os nomes feios. Em qualquer fruteira, no fim do dia e depois de umas purinhas, rabos de galo ou copos de vinho ácido, todo tuque é macho. Às vezes o ambiente fica perigoso, tenso. Em que pese a paciência e o bom humor usual da polacada e italianada do lugar, mesmo naquela fruteira em particular havia limite para tudo. Como nas outras, o álcool sempre amolece o juízo. Daí, o humor encontra a bifurcação: ou segue pelo caminho da alegria e diversão, ou dos maus bofes com muita valentia e agressividade. Nesse dia, porém, ninguém estava de mau humor para expulsar o Nicanor a bordoadas. Estavam mais para a diversão do que para a agressão.

A chuva tinha amainado, mas a água continuava passando com violência dentro dos canos e os dois lagos temporários que se formaram com o aguaceiro permaneciam bem cheios, com as superfícies praticamente no nível da rua que os separava. Tiveram a ideia de pegar o Nicanor e levá-lo para ver a enchente. Como já estavam com os miolos etilicamente amolecidos, enfiaram-no na boca da tubulação a montante. A força da água impeliu-o rapidinho pela dezena de metros abaixo. Do outro lado já o esperavam. Assim que apareceu, puxaram-no para fora. Debaixo de risos e algazarra dos homens ele cuspiu parte da água que havia engolido. Gostaram da brincadeira. Repetiram o feito mais duas ou três vezes.

Felizmente, um deles resolveu usar o pouco siso restante. Ao perceber que o caboclo ia perdendo as forças a cada travessia, sugeriu que parassem. Os outros obedeceram. Retornaram ao bar, menos o Nicanor, para curtir a loucura com nova rodada de pinga e vinho, misturando os sotaques de descendentes de polacos e italianos. A saideira.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 08/06/2012
Reeditado em 08/06/2012
Código do texto: T3712246
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