Meu tio comprou um Opala
 
Meu tio Carlos, apesar de bem humorado, era um homem austero, de bons e sadios princípios, conservador, formal, corretíssimo em suas relações familiares, pessoais e comerciais. Não era de ostentação, mas gostava das coisas boas da vida. Conforto sem desperdícios.

Não abria mão de pequenos prazeres, mas tudo com moderação e cuidado. Talvez pensasse: dos males o menor. Por isso, fumava tentando aliviar os malefícios da nicotina protegendo-se com uma piteira, no tempo em que não havia cigarros com filtro. Uísque, com parcimônia, todos os domingos de manhã na casa de um dos três filhos, obedecendo religiosamente à escala. Cada domingo na casa de um. O almoço, cada um na sua.

Fazia questão de manter essa rotina dominical, mesmo tendo a companhia de dois dos filhos diariamente no trabalho, na Casa Vermelha, inclusive nos sábados ingleses. Acho que fazia isso para manter a união entre todos e poder conversar com os três simultaneamente sobre amenidades, coisa que no trabalho ele não admitia ou pelo menos não incentivava.

No jantar, não abria mão de uma boa sopa. Inverno ou verão. Em visitas noturnas não costumava levar as crianças. Questão de disciplina. Jantavam cedo e iam para a cama. Ninguém piava. Depois, ele e minha tia Lucinda saíam para visitas esporádicas e breves, aqui ou ali.

A tia Lucinda, que era irmã da minha mãe, partiu cedo, deixando o tio Carlos com os três rapazes. Mas ele não permaneceu viúvo por muito tempo. O pastor Soboll, da Igreja Luterana, sabendo de uma senhora da comunidade que também viuvara, tratou logo de aproximá-los. Dona Meta era uma mulher muito fina e educada, bem aos moldes do meu tio. Entenderam-se e casaram-se, para juntos superarem, com felicidade e mútuo amparo, os respectivos e recentes reveses da vida.

Tenho muitas lembranças do meu tio. Várias delas viajam a bordo do seu Dodge. Um sedan sempre impecável, ano 1950, que ficou com ele durante anos. Eu, como toda criança, adorava ganhar uma carona em qualquer carro, mas aquele era especial. Muitas vezes tive esse prazer, como as caronas para voltar das visitas domingueiras aos meus tios Jacob e Miloca, em Piraquara, quando dava sorte de nos encontrarmos por lá. Numa noite de inverno a neblina caiu densa sobre a Estrada do Encanamento, ainda sem asfalto. Meu primo e padrinho Darcy, o filho mais velho do tio Carlos, conduzindo o Dodge. Meu tio, ao lado, zelando pela nossa segurança.

- Darcy, devagar. Cuidado com as pontes.

Em outra ocasião, saímos de madrugada da festa de casamento do meu primo Odilon Guimarães. Novamente o meu padrinho ao volante. Deixou primeiro o tio Carlos e a dona Meta, e em seguida eu e minha mãe. Depois, na companhia da esposa Ariete rumou para a casa, com a responsabilidade de abrigar o Dodge naquela noite.

Ao desembarcar, meu tio percebeu que a lâmpada de uma das lanternas traseiras do carro estava queimada. Vendo a imensa preocupação dele, pensei que a carona terminaria ali. Felizmente, depois de contundentes e insistentes advertências, liberou-nos para prosseguir. Respirei aliviado.

Quando o Opala passou a ser produzido no Brasil, os filhos recomendaram trocar o Dodge. Foi difícil convencer o tio Carlos. Trocar o Dodge? Um carro americano, ultra conservado, por um modelo nacional? Para quê, se o carrinho, mesmo idoso, continuava dando conta do recado com valentia, conforto e desembaraço? Bobagem!

Enfim, depois de meses ouvindo discursos sobre as vantagens da troca, meu tio capitulou.

- Está bem - ele disse para o Darcy. Vá à concessionária e caso tenha um Opala quatro portas da mesma cor do Dodge, pode comprar.

A General Motors do Brasil deve ter-se lembrado do tio Carlos, pois incluiu no catálogo de cores do Opala uma quase idêntica à do Dodge. A encomenda foi feita. Dias depois, o automóvel estava à espera dele na concessionária.

- Pai, o Opala chegou.

- Então vá buscá-lo e leve-o para minha casa. Deixe na garagem. Amanhã venho com ele.

Assim foi feito. O Darcy apanhou o carro na concessionária e estacionou na garagem do tio Carlos, almejando que um não decepcionasse ao outro. E que o Dodge não se sentisse ofendido nem enciumado.

No dia seguinte, a expectativa era grande. Todos os empregados da Casa Vermelha foram para a calçada, à hora habitual do meu tio chegar, para vê-lo ao volante do carro novo. Com pontualidade britânica, ele passou defronte à loja, rumo ao estacionamento. Na boca, o longo conjunto de piteira e cigarro. Todo faceiro, ia ele conduzindo o seu automóvel verde claro: o Dodge, para decepção de todos.

O Opala ainda permaneceu intocável na garagem por um bom tempo. Um dia, contudo, o tio Carlos sentiu aquela vontade de experimentá-lo. Gostou. Mandou emplacar com a mesma numeração do antigo: 5445. Não dirigiu mais o Dodge, que mais tarde foi vendido a um taxista. Ninguém teve a ideia de preservá-lo em família. Somente anos mais tarde o arrependimento bateu. Carro digno de colecionador, ele passou a valer tanto quanto um nacional novo de categoria similar.


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N. do A. (1) - A Casa Vermelha foi uma tradicional loja de ferragens, ferramentes e utensílios domésticos estabelecida no Largo da Ordem, setor histórico de Curitiba, Paraná, da qual o tio Carlos Oscar Johansson era um dos proprietários, em sociedade com seus filhos e com a família Eurico Fonseca.

N. do A. (2) - Na ilustração, imagem de um exemplar do Dodge Kingsway Custom 1950 encontrada na Internet.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 05/06/2012
Reeditado em 03/08/2021
Código do texto: T3707276
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