NOITE DE SÃO JOÃO

Dia 23 de junho, véspera dos festejos em homenagem a São João. Existem duas versões a respeito da prática de acender fogueiras nesta noite "tão brasileira da fogueira, sob o luar do sertão". Uma de origem pagã que associa a fogueira às festas realizadas na Europa, para comemorar o solsticio de verão que ocorre a cada dia 24 de junho. A outra tradição tem origem em uma lenda da religião católica. Isabel estava grávida de São João Batista, combinou com Maria, sua prima, que, por ocasião do nascimento do precurso, acenderia uma fogueira sobre um monte para anunciar a boa nova e receber a ajuda da prima no pós parto.

“A fogueira tá queimando, em homenagem a São João...”

A Rua do Apipuco está uma belezura só: fogueiras armadas para serem acesas logo mais à noite; bandeirolas agitadas ao vento, folhas de palmeira amarradas aos postes; o terreiro limpo, varrido e salpicado de folhas de eucalípto. No centro do terreiro, um mastro ostenta no alto uma bandeira branca com a figura de São João do Carneirinho, no meio. Os fogos já foram encomendados a seu Joaquim Fogueteiro e serão vendidos por Gaía Bezerra numa barraca improvisada. As bebidas ficam por conta de Heleno da Vaca juntamente com o seu famoso "cachorro quente". Dona Enedina vende as pamonhas - "POmonha de primeira!" - como ela diz, com PO mesmo! A sanfona de Zé Edivaldo é que vai animar a festa com os filhos na azabumba e no triângulo. No final da festa, já pela madrugada raiando, Joãozinho, filho de Júlio Sacerdote, vai tocar "Carinhoso" em seu cavaquinho. Tá tudo combinado, tá tudo "aperparado" como exclama Maria Pezinho. Tá tudo esperando a HORA DA FOGUEIRA.

Na cidade de Bezerros é sempre assim: são João, é festa; carnaval, papangu, é festa; fim de ano, procissão de São José, é festa; tem vaqueijada? É motivo de festa; tem cheia no rio Ipojuca, no começo é festa também, mas... à medida que a água sobe, a festa vira em tragédia, as casas situadas na zona ribeirinha se enchem de água, de lama e de bosta. Contam, que, em tempos idos, encontraram um corpo boiando no Rio Ipojuca, corpo jogado em Caruaru, defunto do Hospital São Sebastião dizem alguns maldosos, que veio rolando na cheia e ficou encalhado numa ribanceira, perto do Jequiá, recanto das prostitutas. Numa cheia, lá nos idos anos sessenta, Maria da Sanfona perdeu as máquinas de costura, os tecidos, as louças e móveis, e a sanfona foi no rolo da água barrenta. Um circo lá na rua da baixinha foi "varrido" pela cheia dos anos sessenta, foi picadeiro, a lona do circo, os puleiros e camarotes, as vestes da rumbeira se foram, o palhaço chorava a triste sina, quase foi embora também.

Na cidade de Bezerros, como em todas as demais cidades deste nordeste amado, a noite de São João é festejado com alegria, amor e fartura.

Sem perder o fio da meada, vamos voltar aos festejos da Rua do Apipuco, em Bezerros, cidade situada no agreste do estado de Pernambuco, América do Sul, Brasil! Gostou?

Mal o sol se escondeu lá prás bandas do poente, pela boquinha da noite, as fogueiras começaram a ser acesas, as crianças animadas, soltam "peido de véia", mosquito e estrelinha. Os moradores da Rua do Apipuco, aos poucos assomam às janelas, animados, aventuram-se aos festejos da noite que promete. Zulmira, a festeira principal da rua, animada, sempre incentivara os moradores para a dança do forró rasgado, por ocasião dos festejos juninos. Neste ano, Zulmira viajara a Caruaru, fora ao médico para um tratamento com um cancerologista. Logo mais ela retornaria, e mesmo assim, animaria aquela noite de São João. Sem ela, a festa não teria graça nenhuma! Rasgada é ela, a Zulmira da animação, nascida e criada na rua do Apipuco, desde cedo, fora iniciada no forró, no frevo de rua, baião e xaxado. Quando ainda jovem, sempre fora a noiva dos festejos juninos, morena faceira, bonita e encorpada, objeto de desejo dos jovens na época de "antanho", como ela sempre dizia hoje em dia. Dançava que fazia gosto! O forró animado na rua do Apipuco, Zulmira animada, animava a ralé, como ela mesma dizia, animava até fazer subir a poeira, num fogo que contagiava. Mulher falada, cobiçada, desejada por jovens e velhos, a nenhum negou consolo, um olhar feiticeiro, mas na cama, ia o escolhido, nem a todos o quinhão era cedido. Zulmira fez história. Casou-se com Zé de Zilda, festeiro do Sítio dos Remédios, tinha morada na rua do Apipuco, boa gente Zezinho era. Com Zulmira, Zé de Zilda foi pai de uma dúzia de filhos, uma prova inconteste que sempre fez presença nos folguedos de cama pelas noites escuras e sem luz, da rua do Apipuco de outrora.

Certa feita, Zulmira e Zezinho fizeram uma romaria a São Severino do Ramo, em Paudalho, na carroçaria do caminhão de Seu Biroxo. Carroçaria cheia de romeiros, os benditos eclodiam pela estrada afora, a fé esbanjada sob o embalo da harmônica de Seu Zé Chico. O regresso, noite fechada, romeiros contritos, sonolentos, aqui e acolá, os vagalumes varavam a noite fria daquela estrada empoeirada. Zulmira, sozinha, sem Zezinho, perto da boléia do caminhão, sentiu-se presa de um abraço "acochado", a saia subindo por mãos atrevidas, sentiu-se acariciada por um beijo quente, na escuridão da noite. Sem resistência, foi penetrada por um infiel medonho. Enquanto isso, também sonolento, Zezinho, distante da amada, na parte traseira da carroçaria, em conversas soltas, passava o tempo com alguns romeiros em torno de si.

- Oh Zezinho, tu tai neu, Zezinho? - ele ouviu os gritos angustiados de Zulmira.

- Tô não, Zurmira! - respondeu Zezinho.

- Intão, tão Zazinho! - gritou a angustiada ZUZU.

A coisa não prestou! Zezinho endiabrado correu até Zulmira para triturar o tarado que se atreveu a molestar tão doce criatura! Pela escuridão da noite a sombra desapareceu, aquietou-se em meio aos romeiros e tudo ficou no "DITO PELO NÂO DITO". As más línguas dizem que ela gritou depois do fato consumado... Que maldade!

Mulher zelosa, cultivava a limpeza corporal, sempre ao anoitecer, fazia o asseio diário. Por medida de economia, usava a água na medida certa. Afinal, a família era grande, a água doce armazenada em dois potes, água do rio servia para o asseio. Água na gamela, Zulmira perguntou:

- Zezinho, tu vai fazê alguma coisa neu hoje?

- Tô com vontade não, ZUZU! - respondeu Zezinho.

- Intão só vô lavá os péi!... - exclamou Zulmira.

Zulmira, sem se abater, agora viúva de Zezinho de Zilda, enfrentava com coragem e determinação um câncer no seio que a consumia. Por causa do tratamento, os cabelos cairam, ela usava uma peruca nos momentos festivos que comparecia. Certa feita, Dona Maria Fofa a visitara num sábado, dia de feira. Vendo Zulmira careca, Maria Fofa perguntou:

- Dona ZUZU, porque a senhora tá careca, minha fia?

- Tô fazendo quimioterapia, Maria Fofa! - falou Zulmira.

- Nossa, quando as mininas de Chã Grande subé qui vancê tá na facurdade, vão ficá alegri! - exclamou Maria Fofa.

Boca da noite, alegria tomando conta da rua do Apipuco, sanfona, forró e quadrilha, tudo pronto prá festa da noite de São João. A notícia veio como uma bomba! Zulmira acabara de falecer no Hospital São Sebastião, em Caruarú! A alegria deu lugar à tristeza, muitos choros, muitas lágrimas, lamentações e desmaios! A alegria da rua fora embora, embotara, morrera! Ai...

Em Caruaru, alguns dos filhos, chorosos, compraram um caixão bonito, com frisos dourados, bem à feição da morta, e, após os trâmites legais e costumeiros, puseram o corpo inerte no caixão, enfeitado com cravos e rosas, um terço posto nas mãos entrelaçadas, um sorriso maroto no canto dos lábios ostentava um batom de cor forte. Contrataram um carro funerário para transportar a falecida até Bezerros. Os familiares seguiam em frente e o carro com o féretro os seguia atrás. Uma verdadeira multidão aguardava aquele séquito fúnebre. Abriram o porta malas do veículo e... que surpresa!!! O caixão tinha caído do carro da funerária. O OHHHHHH foi geral!!! Onde estava o corpo? O motorista foi rastreando pela estrada à procura do caixão. Nada da morta! Nada do corpo de Zulmira! A falecida foi encontrada no meio do forró, em Caruaru, placidamente adormecida em "seu sono eterno" ladeada por dois policiais que aguardavam os responsáveis pelo corpo.

O enterro foi um acontecimento na cidade de Bezerros! Muitos choravam e outros tantos cantavam um forró de Luiz Gonzaga que tanto Zulmira gostava: "Vem Morena Pros Meus braços"...

"Causos" das noites mais brasileiras desta terra amada: a NOITE DE SÃO JOÃO!!!

Carlos Lira

Obs:

Qualquer semelhança, é mera coincidência.

clira
Enviado por clira em 09/05/2012
Reeditado em 23/08/2017
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