Gerimunda, uma paixão para dois
Por acaso a descobri no centro da cidade, na rua dos inferninhos. Parada na esquina, toda embelezada, em cima dos cascos na manhã ensolarada. Chamava a atenção pela conservação aparente, apesar da idade que insistia em disfarçar.
Fiquei sabendo que pertencia a um vendedor de maçãs. Enquanto o homem vendia suas frutas, ela ficava ali, estacionada sempre no mesmo lugar, esperando a hora de ir embora. Cedo, auxiliava-o a trazer as caixas da central de abastecimento. Todos os dias.
O baixinho atarracado enchia uma cesta, pendurava no seu antebraço de Popeye e ia fazer a praça. Quando a cesta esvaziava, voltava para recompor o suprimento e seguia para outro trecho. E ela pacientemente guardava o estoque e testemunhava as idas e vindas dele. Com o circuito diário cumprido, no final da tarde o rapaz aboletava-se no bar em frente, para beber umas e outras e refazer as forças.
Eu e o meu amigo Pedroair José Buest tínhamos arrendado uma chácara em sociedade, onde produzíamos verduras em escala comercial. Estávamos procurando ajuda para transportar a produção até o atacadista. Trabalho para três ou quatro vezes na semana. A velha senhora talvez pudesse dar conta do recado, foi o que imediatamente pensei ao encontrá-la.
No dia seguinte, fomos conversar com o vendedor de maçãs. Fixou o preço do passe. Regateamos, mas acabamos fechando negócio. À tardinha fomos buscá-la.
No caminho, o Pedroair lhe arranjou um nome.
- Vai chamar-se Gerimunda.
Achei o nome engraçado e, mesmo sem entender o porquê de tal alcunha, concordei de pronto. Apenas não encontrei a referência na qual ele se baseara. Olhando-a pela retaguarda, não identificava nenhuma possível protuberância que pudesse, pela rima talvez, justificar o apelido. Quem sabe então não fosse o excesso e sim a ausência de traseira avançada que o tivesse inspirado. Gerimunda, aquela sem avanço posterior. Totalmente reta e lisa. Sem bunda.
Seguimos para a chácara conduzindo a nossa paixão comum, que assim se fizera à primeira vista e sem muito pensar. Faceiros, entupimo-la de maços e maços de rabanete, nabo, beterraba, cenoura. Caixas de pepino e abobrinha. Porém, esquecemo-nos de detalhes importantes relacionados ao trajeto que ela teria de enfrentar.
Como uma dama do asfalto iria encarar estrada de terra? Barro, quando chovia? E o ponto mais crucial: a chácara ficava em uma região baixa. Para sair de lá, era necessário vencer subidas íngremes. Já na primeira viagem, pesarosos nós constatamos que, com a carga que lhe dávamos, para a Gerimunda essa era uma tarefa quase impossível.
O caminho mais curto para o atacadista passava pela subida de São Miguel. A Gerimunda entregou os pontos na metade dela. Se não tivesse sido forçada, teria parado logo no início. Com ela apagada, descemos de ré, fizemos a volta e fomos enfrentar a serrinha do Juruqui, aumentando bastante a distância a percorrer. Elegemos este trajeto para as futuras entregas. Via São Miguel, não mais.
No último trecho da serrinha, antes de alcançar terreno plano, o aclive acentuava-se bastante. Eram poucos metros e muitos graus de inclinação. E não dava para embalar, porque a pobre já vinha cansada, quase desfalecendo e, além disso, a estradinha cheia de curvas não permitia muita velocidade. Só tinha um jeito para chegar lá em cima. Faltando pouco para o tope, o carona tinha de saltar com a Gerimunda em movimento. Se parasse na subida, ela não conseguiria arrancar para frente.
Assim, quando o motorista sentia o acelerador encostado no assoalho e ela perdendo velocidade, gritava para o companheiro.
- Pula, João! – quando o Pedro estava na boleia.
- Pula, Pedro! - quando era eu o condutor.
O passageiro, usando de muita habilidade, jogava-se para fora e continuava a pé o percurso até o topo. Chegava antes ou junto com a Gerimunda. Nunca depois. Como prêmio, deixávamos que ela descansasse alguns minutos, antes de seguir viagem. O pior já tinha passado.
Poucas viagens foram suficientes para desvanecer nosso amor pela Gerimunda. Não dava para continuar naquele ritmo. Sentimos um pouco de remorso por não termos avaliado melhor o que esperávamos dela e o que ela podia dar. Tivéssemos feito uma análise mais acurada, não a teríamos tirado da rua dos inferninhos. Exigimos demais de uma velha Kombi com um motorzinho de 1.200 cilindradas, queimando óleo grosso muito além da conta. Melhor se tivesse permanecido com o vendedor de maçãs
Não foi fácil passá-la adiante. Contei com os préstimos de um vizinho, que lidava com carros usados, para vendê-la. Apareceu um pastor evangélico à procura de um veículo grande e barato, para sair com os auxiliares em pregações itinerantes da sua igreja. Levou a Gerimunda. Torci para que ele soubesse respeitar os seus limites, e as orações dos crentes pudessem ser o combustível que desse a ela o ânimo necessário nas subidas mais acentuadas. E, sobretudo, desejei que o religioso não a viesse devolver.
Depois do nosso desenlace da Gerimunda, encontramos a robusta Matilde, que ficou conosco por vários anos. Mas essa é outra história...
Fiquei sabendo que pertencia a um vendedor de maçãs. Enquanto o homem vendia suas frutas, ela ficava ali, estacionada sempre no mesmo lugar, esperando a hora de ir embora. Cedo, auxiliava-o a trazer as caixas da central de abastecimento. Todos os dias.
O baixinho atarracado enchia uma cesta, pendurava no seu antebraço de Popeye e ia fazer a praça. Quando a cesta esvaziava, voltava para recompor o suprimento e seguia para outro trecho. E ela pacientemente guardava o estoque e testemunhava as idas e vindas dele. Com o circuito diário cumprido, no final da tarde o rapaz aboletava-se no bar em frente, para beber umas e outras e refazer as forças.
Eu e o meu amigo Pedroair José Buest tínhamos arrendado uma chácara em sociedade, onde produzíamos verduras em escala comercial. Estávamos procurando ajuda para transportar a produção até o atacadista. Trabalho para três ou quatro vezes na semana. A velha senhora talvez pudesse dar conta do recado, foi o que imediatamente pensei ao encontrá-la.
No dia seguinte, fomos conversar com o vendedor de maçãs. Fixou o preço do passe. Regateamos, mas acabamos fechando negócio. À tardinha fomos buscá-la.
No caminho, o Pedroair lhe arranjou um nome.
- Vai chamar-se Gerimunda.
Achei o nome engraçado e, mesmo sem entender o porquê de tal alcunha, concordei de pronto. Apenas não encontrei a referência na qual ele se baseara. Olhando-a pela retaguarda, não identificava nenhuma possível protuberância que pudesse, pela rima talvez, justificar o apelido. Quem sabe então não fosse o excesso e sim a ausência de traseira avançada que o tivesse inspirado. Gerimunda, aquela sem avanço posterior. Totalmente reta e lisa. Sem bunda.
Seguimos para a chácara conduzindo a nossa paixão comum, que assim se fizera à primeira vista e sem muito pensar. Faceiros, entupimo-la de maços e maços de rabanete, nabo, beterraba, cenoura. Caixas de pepino e abobrinha. Porém, esquecemo-nos de detalhes importantes relacionados ao trajeto que ela teria de enfrentar.
Como uma dama do asfalto iria encarar estrada de terra? Barro, quando chovia? E o ponto mais crucial: a chácara ficava em uma região baixa. Para sair de lá, era necessário vencer subidas íngremes. Já na primeira viagem, pesarosos nós constatamos que, com a carga que lhe dávamos, para a Gerimunda essa era uma tarefa quase impossível.
O caminho mais curto para o atacadista passava pela subida de São Miguel. A Gerimunda entregou os pontos na metade dela. Se não tivesse sido forçada, teria parado logo no início. Com ela apagada, descemos de ré, fizemos a volta e fomos enfrentar a serrinha do Juruqui, aumentando bastante a distância a percorrer. Elegemos este trajeto para as futuras entregas. Via São Miguel, não mais.
No último trecho da serrinha, antes de alcançar terreno plano, o aclive acentuava-se bastante. Eram poucos metros e muitos graus de inclinação. E não dava para embalar, porque a pobre já vinha cansada, quase desfalecendo e, além disso, a estradinha cheia de curvas não permitia muita velocidade. Só tinha um jeito para chegar lá em cima. Faltando pouco para o tope, o carona tinha de saltar com a Gerimunda em movimento. Se parasse na subida, ela não conseguiria arrancar para frente.
Assim, quando o motorista sentia o acelerador encostado no assoalho e ela perdendo velocidade, gritava para o companheiro.
- Pula, João! – quando o Pedro estava na boleia.
- Pula, Pedro! - quando era eu o condutor.
O passageiro, usando de muita habilidade, jogava-se para fora e continuava a pé o percurso até o topo. Chegava antes ou junto com a Gerimunda. Nunca depois. Como prêmio, deixávamos que ela descansasse alguns minutos, antes de seguir viagem. O pior já tinha passado.
Poucas viagens foram suficientes para desvanecer nosso amor pela Gerimunda. Não dava para continuar naquele ritmo. Sentimos um pouco de remorso por não termos avaliado melhor o que esperávamos dela e o que ela podia dar. Tivéssemos feito uma análise mais acurada, não a teríamos tirado da rua dos inferninhos. Exigimos demais de uma velha Kombi com um motorzinho de 1.200 cilindradas, queimando óleo grosso muito além da conta. Melhor se tivesse permanecido com o vendedor de maçãs
Não foi fácil passá-la adiante. Contei com os préstimos de um vizinho, que lidava com carros usados, para vendê-la. Apareceu um pastor evangélico à procura de um veículo grande e barato, para sair com os auxiliares em pregações itinerantes da sua igreja. Levou a Gerimunda. Torci para que ele soubesse respeitar os seus limites, e as orações dos crentes pudessem ser o combustível que desse a ela o ânimo necessário nas subidas mais acentuadas. E, sobretudo, desejei que o religioso não a viesse devolver.
Depois do nosso desenlace da Gerimunda, encontramos a robusta Matilde, que ficou conosco por vários anos. Mas essa é outra história...