"o tiro saiu pela culatra"

Lá prás bandas da Jaíba no norte das Minas Gerais, tinha uma fazenda muito grande que o proprietário criava gado de corte da raça nelore; raça resistente às intempéries do tempo e devido a seca e estiagem prolongada na região, quase não chove; a taxa pluviométrica é bem baixa. Os fazendeiros passam apertados por falta de comida para o gado. O sol escaldante, queima o capim e o consumo de mineral triplica, na busca de micro e macro minerais para suprir a ausência nos pastos; a própria natureza estimula-os na busca desses produtos.

È sabido que a raça de gado nelore além de muito resistente, é chamada aqui de “sangue quente”, não agüenta desaforo; se apertar uma rês – gado - ela parte para cima mesmo. Os fazendeiros então criam junto: ovinos e caprinos, que amadrinham facilmente com o gado e depois do pastoreio, sempre juntos, retornam para perto da sede, trazendo consigo o gado; isso faz com que os bovinos fiquem mais mansos, calmos, se não amansarem de tudo, pelo menos melhoram muito, pois estão diariamente perto da sede e no curral acompanhando-os vendo movimento de gente prá lá e prá cá. É uma tática que dá certo e ajuda os peões na lida; facilita muito. Portanto, são dominadores e o gado fica submisso a eles.

Os rebanhos em algumas fazendas são numerosos; além da reprodução ser mais rápida, a ovelha pare dois a três cordeiros de cada vez, geralmente o patrão não deixa sacrificar as fêmeas, somente os machos. É uma carne muito saborosa – retirando naturalmente as glândulas que existem nos machos evitando o cheiro forte – é fantástica; usando um tempero bem simples e aplicado na quantidade certa, é uma delícia!

Por se tratar de uma fazenda com extensão territorial bem extensa, o trabalho acaba por ser bem exaustivo e ao final do dia, os peões estão muito cansados e ansiosos para relaxar um pouco. A forma mais simples, alegre e gostosa é contar causos tomando uma cajibrina – pinga, cachaça – lambicada lá mesmo na fazenda; da boa e saboreando um tira-gosto formidável, assado no forno de tijolinho comum, que conserva bem a caloria; daqueles lá no fundo da cozinha, perto do paiol. Isso acontecia quase todos os dias, principalmente na época de vacinar os animais, roçar as mangas e apartar o gado para vender para os frigoríficos, era freqüente.

E o dia transcorre na correria e sol escaldante; o patrão com pressa na conclusão do serviço e o pessoal, cansados, acelerando para terminar logo e voltar para ver os meninos. Louro roçando as mangas e valendo-se de um trator já com uns bons anos de serviços prestados naquela fazenda; punha-o para moer, só via pau sendo atirado para todos os lados; como era pirracento, não gostava de deixar serviço para o outro dia. O Nilson, Zé Branco, lá pras outras bandas apertando a tuada de outro serviço; Armindo, o mais velho da turma, experiente vaqueiro, sempre na lida do gado; curando e apartando a bezerrada, transferindo o gado mais antigo para outras mangas e etc. Bentinho, auxiliar – pau prá toda obra - e bom cuca.

N´um final de tarde daqueles bem movimentados e cansativos, Armindo, teve a idéia de fazerem uma farra; dessa vez, buscariam o gole – cerveja - no comercinho mais próximo e sacrificariam um carneiro para comemorarem a conclusão do serviço com sucesso. Prontamente aceito pelo grupo, o Betinho, peão mais novo e entusiasmado, querendo mostrar serviço; ficou encarregado de ir até o comércio buscar a “loura gelada”; foi feito uma vaquinha onde todos participaram, até mesmo Armindo, o pão duro da turma. Enquanto a cerveja não chegava, foram no curral escolher qual animal seria sacrificado. O Louro e o Armindo, mais experientes na matéria, entraram dentro do curral para a escolha; Nilson e Zé Branco, na espreita; e no momento que estavam observando qual seria o escolhido, notaram que uma fêmea estava machucada, e, tudo indicava que tinha sido mordida por um animal grande. Um falou: cachorro? O outro defendeu a tese: não! A posição que foi mordida é de um animal bem grande; talvez uma onça. Louro meio encabulado, diz: será? Tudo indica; diz o Armindo. Apartaram a ovelha machucada na casa de curral, aplicaram um anti-inflamatório, bateram mata-bicheira ou lepcid – produto anti-mosca e repelente. Ao retornar, elegeram o candidato a tira-gosto e mão nele; berros e mais berros, não adiantaria. Levaram-no até o fundo da cozinha e sacrificaram-no, em seguida, tiraram o couro e fizeram a desossa – retirada dos ossos. O couro, certamente serviria de tapete para o quarto; os ossos; depositado em alguma vala funda da fazenda. Nesse momento chegava Bentinho com a cerveja geladinha; o comércio ficava uns quatro quilômetros da fazenda e com a farta quantidade de transporte existente lá, não seria problema. Lá nos fundos, Louro o tratorista, já estava quase terminando com o esquartejamento do bicho.

Luz da casa já acesa; não sei prá quê? Uma lua fogosa e farta a todos, clareando, uma beleza; era só fazer uma fogueira para completar a festa.

Uma farra só! Uma verdadeira algazarra. Tinham mesmo que aproveitar, porque assim que o patrão chegasse; bagunça passaria longe dali. Patrão muito sisudo, sério e sistemático, não gostava de brincadeiras, ainda que após o serviço.

O pernil fora lavado e temperado somente com sal grosso, típico preparo de churrasco e levado n´uma assadeira, até o forno que a essa hora, estava no ponto.

Uma hora depois, o cheiro daquele delicioso carneiro pirraçava e chegava até queimar as marinas ou como se diz aqui: queimava até as ventas!

O tratorista, foi até o forno e retirando a assadeira levou-a até a turma que com uma faca peixeira – das boas – afiada, correu-a sobre aquela maravilha dourada, tirando por cima bem suave porções bem finas e suculentas, não sobrando nada, rapidinho... em seguida, devolvendo-a para mais uma assada ao forno. Aquela rodada formidável já mostrava o que seria a farra; aquele “põe-gosto” ao invés de tira-gosto e aquela cerveja gelada, era tudo que precisavam. Ta suculento demais... me dá mais uma aí com a guia – forma de dizer que gostaria de beber a cerveja acompanhada com a pinga – disse o Armindo.

A farra já se prolongava prá adiante... ouvia-se latidos dos cachorros bem distante, alertando algo que naquele momento nada importava para a turma; somente o êxtase da farra.

A noite esvaindo e a barra do dia anunciando sua chegada. Ressaca era a ordem do dia! Cada um pior do que o outro. Também pudera, a cerveja acabou e atolaram o cabo na cachaça; misturando bebida fermentada com destilada; aí já viu né!

Passaram o dia todo mau! Sem condições de pegar firme no batente. Um servicinho aqui, outro ali, até passar o dia.

Ao chegar a noite; os ovinos e caprinos no curral inquietos, berrando muito, fora do normal; da varanda da casa, Armindo em conversa com Louro, repararam aquela movimentação que lhes chamou a atenção e resolveram verificar o que estava acontecendo. Ao chegar, depararam com uma cena desoladora: umas seis ovelhas abatidas. O Armindo adiantando disse: N´um falei! É onça mesmo. Elas que matam dessa forma. Atacam no pescoço ou na queixada. Louro impressionado com o que estava vendo, disse ao amigo: Armindo, vamos levar, limpar e aproveitar a carne deles antes que endureça. Agente limpa e põe na geladeira; quando o patrão chegar, contamos o que aconteceu e ele vê como faz.

Quando o patrão chegou de viagem, indo até a geladeira para refrescar-se com um copo d´água geladinha, pois o calor era insuportável; deparou-se com aquele frigorífico; perguntando imediatamente: Louro, Armindo ! O que significa isso? Louro, por ser um funcionário mais atirado que os demais, relatou o acontecido e o patrão indignado com o que acontecera, ordenou que resolvessem a situação.

Armindo e Nilson, resolveram abater a onça e esquematizaram a forma como iriam pegá-la. Decidiram que ficariam cada um n´um quatro da casa, com a janela aberta, só uma frestinha, e assim que ela chegasse, corriam o fogo nela. E assim fizeram! Cada um acomodou em um quarto; com a espingarda polveira em mãos; os quartos ficavam esquinados, de forma que um vigiava um lado e o outro a outra banda.

Esperaram... esperaram... e dormiram!

No outro dia, o patrão pediu a Louro para abater a fera, pois os dois, não estavam com nada; oferecendo até sua carabina de estima; mas Louro, preferiu usar a sua, já estava acostumado com ela.

Mas Armindo e Nilson, não se conformaram; achando um desaforo outro fazer o serviço que começaram e não tiveram êxito. Assim que o patrão foi dormir, chamou Louro e pediu que deixasse que iriam dessa vez, acabar com ela. Louro deu de ombros e saiu indiferente...

O patrão parte para Montes Claros, cidade de origem e, combinaram para aquela noite mesmo esperar a “bicha”. Ficaram aguardando na varanda da casa até o momento de surpreender a fera. Enquanto esperavam a hora “h”, tomaram umas biritas da boa, com põe-gosto ao estilo matuto mesmo e ficaram ali jogando conversa fora até o momento de irem para o serviço.

Lá prás meia noite, foram até o curral onde estava o rebanho e prepararam uma escada que a colocaram encostando no telhado da casa de curral. Sabedores de como onça tem um faro muito aguçado, principalmente a favor do vento, decidiram que o melhor local para ficarem sem serem percebidos, seria no telhado e não corriam risco caso acontecesse alguma coisa errada. E assim fizeram!

O telhado da casa de curral, chamado de quatro águas, em outras regiões de grupiado; era bem íngrime, telhas francesas, esteios de trinta por trinta centímetros de largura na pura aroeira – madeira muito resistente e dura, em extinção e que não acaba nunca pela resistência - e um pé direito de uns três metros ou mais de altura.

As horas passam... cachorros ao longe latem... desajeitados lá em cima, aquilo já os incomodando, sem posição confortável, o pau de fogo do lado; na espera...

A onça demorou e eles sob o efeito da “mardita” – cachaça – relaxaram e ferraram no sono.

Ouvi-se um estalo e os carneiros e cabras pressentindo a presença de algo estranho, começou a agitar de um lado para o outro no curral; alguns berros contidos; nesse momento... a onça pula n´uma vítima e aí ouve-se berros para todos os lados; agora com fartura e sem economia; correria total dentro do curral; nesse burburinho, os caçadores de “maracujá” assustam, ainda sob o efeito dela e sonolentos; Nilson tenta buscar a polveira, desequilibra e descendo telhado a baixo, escorregando em direção ao chão; cata a perna do companheiro e segura-a como uma tábua de salvação fosse; puxa-o para baixo também. E aquilo desse... Não se sabe como; na queda; ouve-se um disparo em direção ao chão - ainda bem – e amontuaram um por cima do outro. A onça... no mínino deve ter feito uma paradinha antes de sumir e riu da cara daquelas bestas.

Ainda deitados, sentindo dores e sem condições de se levantarem, grita os companheiros que lá da casa já estavam vindo, pois haviam ouvido o tiro e pensando que abatera a onça, corriam na direção do curral. Ao trepar no ripão do curral, notaram as duas bestas caídos no chão e achando que estavam segurando a onça - a noite não ajudava, estava escuro - o instinto de defesa aflora e pulam dentro para ajudarem a segurar a onça ferida. Ao aproximarem, viram que os dois estavam agarrados um no outro; e não existia onça nenhuma. Gugunavam de dor e o Nilson pedia que tirasse o Armindo de cima dele – o cabra pesava uns cento e dez quilos de real ignorância. Com muito jeito, apartaram os dois e perguntaram o que havia acontecido. Louro ansioso, questiona a Armindo: Uai! Cadê a onça? Ocês não mataram ela não? O Nilson, curvado ao solo com as mão nas costelas, dizendo: Que onça? Cês tão vendo alguma onça aqui? Louro sem entender retruca: Pois é! Cadê ela? Armindo com muita dificuldade já de pé, apoiado pelos companheiros arrisca falar: Num sei não Louro! Quando acordei, essa besta aí, tava me puxando prá baixo e só vi o tiro! Louro observa: É eu ouvi mesmo; achei que tinham acertado nela. Nela o quê? Falou Nilson. Eu vi quando ela chegou e quando fui pegar a espingarda, desequilibrei e escorreguei; tentando segurar em alguma coisa, puxei a perna de Armindo e nós dois descemos. O Betinho e Zé Branco, não se agüentavam! A vontade era chorar de tanto rir. Zé Branco disse: Uai! E o tiro acertou nela? Nilson ainda com dores; agora de pé responde: Não sei!

Quando estavam saindo do curral em direção a sede - ficava uns oitenta metros de distância - Betinho avistou uma silueta de um animal caído ao chão; exclamando: Ué! Ta parecendo uma ovelha ou um bode caído ali! Louro, mais atirado da turma, soltando o braço de Armindo, apressou-se em tirar a prova. Aproximou e com a ponta do pé cutuca o espinhaço do animal; constatando que realmente era uma cabra. Ordenou que Bentinho a puxasse para a varanda da sede, enquanto ele e o Zé Branco, ajudavam os dois até a casa.

Ao chegarem na sede; puseram os dois na sala assentados no sofá e foram conferir o estrago: Nilson, sentindo dor nas costelas que não estava nem conseguindo conversar; Armindo; segurando o tornozelo ora o punho. Louro muito sacana; resolve tirar um sarrinho: É que oncinha danada! O Armindo correu-lhe o olho, como se dissesse: depois cê me paga!

Momento em que o Bentinho chama lá da varanda: Louro! Vem cá! Louro sai e Zé Branco no encalço. Oi, Diz! O Bentinho mostra-lhe a lateral da cabra. Ele olha aquilo e dizendo com um sorriso sem vergonha e sacana: Eu achei que a onça tinha dado cabo dela; mas foi as bestas! Os três sorriram e lá de dentro escutava-se os ai... ui...

Socorro? Só no outro dia. Ficaram o resto da madrugada naquele sofrimento só! O hospital mais próximo estava há uns duzentos e poucos quilômetros.

Os três rapazes deixaram a “obra de arte” na varanda e foram dar a notícia aos dois mosqueteiros. Louro com aquela cara lavada disparou: É os meninos; cês tão com pontaria viu? Atiraram no que viram e mataram o que não viram! A gargalhada ouvia-se a quilômetros, menos das duas bestas! Armindo o máximo que disse foi: Huuuum...

Louro, como conhecia bem o patrão; após chorar de rir, perguntou: Como vamos fazer para falar com o homem? Armindo juntou forças e dizendo com cara franzida: pega isso e joga no mato, eu n´um tô guentando comer isso mais não! A turma riu e agora com a participação de Nilson.

Aguardaram o patrão chegar.. tão logo soube do caso, não gostou! Era normal! Fez uma horinha lá ainda e levou as dois “animais“ para o hospital cidade de Janaúba.

Resultado: Armindo fraturou o punho e o tornozelo; Nilson, quebrou três costelas. Ficaram de molho por uns quarenta dias.

Ah! Ainda tiveram que pagar a cabra que mataram e a espingarda que quebrou na queda.

Aos órgão de proteção aos animais: Esse causo aconteceu há muito tempo atrás viu?