"a alma penada"

Lá prás bandas da Taboquinha - lugarejo distante umas quatro léguas de Morrinhos município de Montes Claros no norte de Minas Gerais – existe uns sítios pequenas - de gente que trabalhava nas fazendas grandes que com o tempo os patrões tiravam um hectare ou dois hectares e davam para aquele funcionário antigo da fazenda – seria uma forma de pagar pelos serviços prestados durante longo tempo de atividade na propriedade. E assim era...

Seu Tonhão, marido de Dona Júlia, foi contemplado com a aquisição de um terreninho desses; e lá prá aquelas bandas, virou mesmo foi uma tradição dos patrões doar pequenas faixas de terras para os ex-funcionários.

Seu Tonhão, homem trabalhador, sistemático ao extremo, humilde, de pouca conversa, mãos calejadas pela dureza da vida e do tempo e Dona Júlia, sua esposa, mulher trabalhadeira com seus afazeres domésticos e se necessário fosse, ajudava o marido na lida do campo, era só pedir e lá estava ela. Calada mas valente de nascença, estava ali sempre na espreita observando as coisas; nada passava por ela sem que ela soubesse.

Tinham um filho por nome Gilson, mas que todos o conhecia por “Piqueno”, até mesmo a família – os tios, primos – não lembravam mais o nome de batismo dele, tanto que pegou o apelido. Os outros quatro filhos partiram para a cidade, trabalhar e estudar já que não gostavam da vida da roça; ficando somente o filho “Piqueno”. Rapaz de bom caráter, bom de serviço; sabia fazer tudo na roça: de tirar leite, até fazer pequenos reparos nas construções; contava com uns vinte e dois anos, nessa época; gostava muito de novidades; mas não falasse com ele sobre assombração não que ele ficava nervoso, ficava assustado. Seu sonho era comprar um cavalo bom de passo e uma riata – arreios do cavalo - de dar inveja quem visse. Na roça era assim; quem chegasse com um cavalo gordo, bem escovado, limpo e com os arreios de primeira, era visto com bons olhos; até mesmo para arranjar namorada. O pai olhava o animal se estava bem cuidado, caso não estivesse, já falava logo para as filhas: Ó cês cuidado com esse rapaz. Não é zeloso não! Oia o animal e a riata dele! Era assim...

E a vida ia se passando, no percurso normal. E até que pudesse adquirir um bom animal, passavam os dias e labutava para todo lado de pé mesmo. Andava prá todos os lados, já estava acostumado com esse batidão e nem importava mais. Assim passava...

O vaqueiro do visinho, estava precisando aumentar o contingente para dar conta da roçada logo; o tempo já estava escasseando e precisava roçar as mangas logo para esperar as chuvas que estavam quase chegando; estava ali mesmo. Como estava difícil arranjar camarada de confiança para o serviço, lembrou do Seu Tonhão – morava não muito longe dali, era de confiança e muito trabalhador, tinha certeza que o patrão aprovaria a escolha. O dia que o patrão chegou na fazenda; depois de repassadas as informações sobre a semana na fazenda, pediu para falar com ele sobre a quantidade de camarada na roçada. O patrão logo perguntou: Ocê arranjô mais gente? O vaqueiro com sua timidez regional, foi logo falando: Ué patrão! Num arrumei não! Num acha! Então disse para o patrão: Se o sinhô me autorizar vou procurar e ver se pode ajudar nós o Seu Tonhão. Os mininos ia gostar muito – minino é a forma que se trata o pessoal que está fazendo algum serviço na roça.

Seu patrão com expressão de tanto faz como tanto fez disse-lhe: Uai Juca, sê qui sabe! Só qui pago ele no mesmo preço que os mininos! O funcionário acenando a cabeça responde ao patrão: Ora Seu Carlos, tem qui pagá é assim mesmo! Completando diz: Amanhã cedin vô procurá ele e vê se vem! O patrão saiu prá lá e o vaqueiro ficando por ali...

E assim aconteceu...

No outro dia bem cedinho, o vaqueiro chega à propriedade do Seu Tonhão; chama no colchete pequeno bem ali do lado esquerdo da entrada da casa. Batendo palmas, logo Dona Júlia ouve e sai na janela espreitando e logo reconhece o vaqueiro funcionário do visinho. Sai a porta, cumprimenta-o e pergunta: O sinhô qué falar com meu marido? O vaqueiro, sabendo da fama da senhora; mulher de pouca conversa, adianta logo: Sim senhora! Preciso falar com ele urgente! Dona Júlia, pede para aguardar e apressa em chamar o marido. Montado no cavalo ainda, o vaqueiro pensa: ê diacho! Tomara que essa mulher não atrapalhe. Passados uns dois minutos, surge na porta da casa o Seu Tonhão, que logo o convida para apear do cavalo – apear é desmontar - o que foi prontamente aceito pelo vaqueiro. Convidando para entrar, Seu Tonhão aguardou até que o visitante aproximasse da porta da casa e estendeu a mão para cumprimentá-lo. Apontando para uma cadeira de madeira antiga, pediu que o visitante assentasse. Atendendo a solicitação do dono da casa, o vaqueiro aceita de bom grado e em seguida retirando o chapéu.

Conversaram por uns minutos sobre a chuva que estava ali mesmo quase descendo e Seu Tonhão tocou no assunto que estava aguardando a chuvada para plantar um quintalzinho de milho, feijão e mandioca. O vaqueiro preocupado com aquela conversa pensou: aiaiai... só faltava essa! Conversa vai, conversa vem, o vaqueiro com muito jeito, toca no assunto com o homem: Pois é Seu Tonhão, a chuva ta berando por aí e eu tô cuns minino lá em casa fazeno uma roçada e se num arranjá mais gente, num sei não! Vem a chuva e o sirviço num tá pronto. Seu Tonhão, sistemático, observa-o fixamente e pergunta: O sinhô vei aqui mesmo prá quê moço? O vaqueiro quase cai da cadeira. Não esperava de forma nenhuma aquela pergunta naquele momento, já que a prosa estava transcorrendo bem. Ele sabia que o homem era de pouca conversa, sistemático; mas ser direto dessa forma... era demais. Sem graça, ele guguna – gugunar é falar baixinho consigo mesmo – alguma coisa diz: É Seu Tonhão; tô aqui a mando do meu patão, vê se o sinhô pode ajudar os minino lá em casa. È só por uns dias só. Seu Tonhão, corre-lhe um olhar, tentando buscar nele a veracidade do assunto e da proposta. Depois de uns segundos de análise, olha para o vaqueiro e diz: Oi moço; fala pro seu patrão qui posso i só dispois de telça-feira. Se tiver bom prêle assim... O vaqueiro com medo do homem voltar atrás, acerta logo a contratação falando até sobre o valor a receber. Ó Seu Tonhão... pois fica assim combinado! Eu espero o sinhô lá bem cedo, modi mostrar praqueles minino como é que faz! O valor é o mesmo qui ele paga os mininos. Naquele instante, Dona Júlia aparece com uma bandeja com dois copos e uma garrafa de café e n´um pratinho raso de vidro, uns dois tipos de biscoitos tampados com um paninho branco tão limpo que doía as vistas. Põem em cima da mesa e serve os dois que ali ficaram em silêncio até que a dona da casa saísse. Dando o primeiro gole no café, o vaqueiro arrisca quebrar o gelo: Oi! Muito bão. O cafezinho ta dá hora! O dono da casa, desconfiado, monossilábico diz: Éh! Apontando para as misturas – misturas é o que acompanha o café - o vaqueiro satisfeito em ter conseguido seu intento, agradece dizendo que iria tomar só o cafezinho mesmo. Levanta-se, coloca o copo na bandeja e com o chapéu em uma das mãos, agradece ao dono da casa e ratifica a espera lá na fazenda para o serviço. Seu Tonhão acena a cabeça, como se estivesse concordando. Em voz mais audível despede da dona da casa e sai em direção ao cavalo amarrado ao lado do colchete. Monta e a passo, vai em direção a fazenda de origem.

Dona Júlia, curiosa e desconfiada, chega até a sala e pergunta ao marido: Uai Tonho; cê vai nessa empreitada? O marido ainda com os olhos no vaqueiro, gira a cabeça de lado e responde: Uê Jula! Eu vô! É a primera vez qui mi chama. E no mais, tô pricisano de um dinhero. Tem nada não! Dona Júlia, olha com jeito reprovador e sai para a cozinha.

E assim... chegada a terça-feira bem cedinho, Seu Tonhão toma uma copada de café com um pedaço de beju – beju ou biju, é feito de farinha de mandioca, na pedra ou na panela, untada com manteiga, é uma delícia, principalmente quente – joga o embornal e a enxada nas costas e ruma – parte - para a fazenda.

Dias vão... dias vem...

Piqueno – filho do Seu Tonhão – descobriu que na fazenda que seu pai estava trabalhando, tinha uma televisão e apaixonado ficou ao ver de relance aquela maravilha. Tratou logo de fazer amizade com os donos da casa; principalmente com o filho do fazendeiro; já o conhecia de vista, mas não tinha nem sequer lhe dirigido a palavra. Um dia sua mãe lhe chama e pede para levar a comida do pai lá na roçada da fazenda do ricão – homem rico de posse - já que seu pai saiu atrasado para o serviço e não deu tempo de Dona Júlia preparar o dicumê – comida - para ele levar.

O Piqueno todo feliz, prontamente se apresenta. De posse da marmita de comida, ligeiramente se encaminha para a fazenda. Ao chegar lá, foi direto para desfazer da encomenda e depois de entregá-la foi ao encontro do João Carlos – filho do fazendeiro. Assim que aproximou da sede, avistou o rapaz na sala assistindo televisão; e pensou logo: Éh! Vai ser aqui! Chamou o rapaz que logo o convidou para entrar e assentar. Rapidamente acomodou-se por ali e com um olho na televisão e o outro no rapaz, foram conversando. Quando já estava lá uns quarenta minutos, agradeceu o rapaz e dizendo ter que ir embora, foi convidado para voltar para assistir futebol no domingo. Aí ficou feliz demais... agora agradeceu sorrindo e foi embora...

Dias iam... e começa uma amizade entre os dois.

Passados algum tempo... já tinha a confiança do povo da casa, Piqueno já entrava e saia sem se anunciar; como se fosse da casa já á muito tempo.

Nessas idas e vindas dele para a casa do agora amigo João Carlos, saiu a tardezinha no intuito de assistir mais um futebol no domingo. Chegando lá ainda deu tempo para limpar a orelha e fazer a crina do cavalo do amigo – coisa que ele fazia muito bem – e em seguida foram para a sala acompanhar o jogo que esperavam já um tempo. Assistiram ao jogo e ficaram ali conversando sobre as moças do lugarejo lá perto, combinando o dia que iriam lá bater papo com elas. João Carlos, perguntou ao amigo se conhecia bem as moças e queria que ele apresentasse para ele. Piqueno prontamente concordou, mesmo porque sairia ganhando com isso.

Conversa vai, conversa vem...

A hora avolumou-se e quando percebeu já era tarde e nesse dia, estava escuro, sem lua testemunha para clarear o caminho. De um salto, levanta-se e dizendo ao amigo que precisava ir embora. O João Carlos ainda contra-argumentou, dizendo para que ele dormisse lá e no outro dia cedo, fosse embora. Piqueno nunca tinha dormido fora de casa, não concordou e dizendo que teria que ir mesmo e que deixaria para outro dia. O amigo então, querendo ajudar, disse: Espera aí Piqueno, vou lhe emprestar uma lanterna, pelo menos já ajuda para clarear a estrada. Evitar que você encontre uma cobra por aí. Em silêncio, Piqueno ficou, mesmo porque sabia que a idéia era boa. Despediu do amigo e ora ascendia a lanterna ora apagava – com medo de gastar demais as pilhas e ter que comprar outras – ia levando...

N´uma certa altura da tuada – tuada no nosso meio, são as passadas da caminhada – ele ouviu um estalar no mato, não muito longe dele e... aquela coisa de “não é nada não!” Continuou a caminhada... ora ligava a lanterna, ora desligava, indo pelo escuro mesmo. Só que os estalos já eram mais comuns e incomodam agora mais. Ele apertava a toada, os estalos também. Ele diminui, aquilo também. Ele pensou: Éh isso não tá certo! Numa certa altura, parou no meio da estrada e direcionando a lanterna para o lado direito, uns cinco metro de distância dele, o facho da luz foi direto naqueles olhos grandes e brilhantes, pareciam fogo! Estavam mais ou menos uns setenta a oitenta centímetros do chão. A lanterna lumiando – é assim: iluminando – e os olhos estatalados, sem piscar. Ele arrepiou dos pés até a cabeça; seu cabelo parecia está todo de pé, o coração só faltava salta pela boca, as pernas – no primeiro momento – amoleceram e logo tinham o desejo de correr. A lanterna, agora sem muita firmeza, tremia...

Começou a correr... e os estalos, também... E perna prá quem te quer. Quanto mais corria, era acompanhado pelos estalos. No sufoco, só vinha um pensamento na mente: é alma penada e quer me pegar! Quanto mais sentia medo, mais corria ... e agora, pela estrada aquilo o seguia. De vez em quando, arriscava apontar a lanterna para trás e via os olhos em fogo vindo na sua direção. O medo aumentava a cada metro, sabendo que estava perto da sua casa; sentiu um alívio. Corria... e ao aproximar de sua casa, aos gritos de: Mãe! Mãe! socorro.. é alma penada, quer me pegar! Nisso, Dona Júlia escuta aqueles gritos, apanha a lamparina e sai no terreiro; levantando a lamparina acima da cabeça para assuntar – ver – o que estava acontecendo - Seu Tonhão, cansado, já dormia – Ela ficou ali espreitando – olhando – quando destampa aquela aranzela – bagunça – correndo em sua direção; grito prá todo lado: socorro é alma penada! Os gritos eram de desespero mesmo; foi quando ao entrar no curral; sentiu o calor daquele corpo aproximar do seu... e embolaram chão a fora... gritos! Chutes! Berros! Desespero! Em meio aquela bagunça, Dona Júlia, mulher destemida, aproxima uns quinze metros daquela anarquia e clareia com a lamparina e ver assustada a alma penada; parada sem ação! O filho se debatendo no chão, nervoso e nem viu que a “alma penada” não estava mais junto dele. Dona Júlia então gritou para o filho: Ô seu besta! Levanta daí. Tem alma penada coisa nenhuma. Óia aqui a alma penada... Piqueno, todo sujo, arranhado, pára e sente que está só no chão, que a “alma penada” não o matou. Levanta-se ainda em desespero e pergunta a mãe: cadê ela? Prá onde foi? Dona Júlia diz ao filho: Ela o quê? Tá doido? Ce bebeu Piqueno? Piqueno atônito... Não mãe! Ela, a alma penada! Dona Júlia gira o lampião para o lado e clareia perto da casa um cachorrão assustado com aquela aranzela toda e Dona Júlia fala para ele: Quando ouvi seus grito, saí aqui fora com a lamparina e vi oce correndo prá cá. Ocê entro no curral e o Bandido – Bandido era o nome do cachorro – vei junto concê. Ele viu qui tava chegano na casa, quis passar na sua frente e imbaraçô no cê e oces dois caiu no chão. Cê não viu o Bandido não? Piqueno sem acreditar naquilo tudo, disse: Então foi ele? Dona Júlia falou: Foi... Piqueno, agora mais tranqüilo, arrisca lembrar do acontecido lá atrás: bem que eu vi, eu parava, parava também... eu corria, corria também... Dona Júlia então completa: era Bandido achando qui cê tava brincano cum ele... Houve um silêncio... Desvendado o enigma, sua mãe entra para dentro da casa e Piqueno vai até o tambor no fundo da cozinha tomar banho frio, já que não tinha luz na casa e nem sequer chuveiro quente. Batendo queixo, pois a água naquela altura estava gelada, engrinhava-lhe – engenhava - até os pés.

E assim... termina mais uma história ou estória; dependendo de como a vê!