"a mula sem cabeça"

Cansados da vida na cidade – muita agitação, barulho intenso de buzinas, turbulência – uns amigos resolveram passar uns dias no campo no afã de descansar a cabeça.

Pensaram... como iremos fazer para irmos há algum lugar no campo? Não temos dinheiro? Não conhecemos ninguém que tenha uma fazenda, sítio ou algo parecido? Um deles – o Wal, o mais velho e mais engraçado, um verdadeiro curtidor da vida, se lembrou que um cunhado havia comprado uma propriedade rural e tinha a certeza que ele não importaria com as visitas inesperadas. Disse então: porquê não vamos para a fazenda do Zé? Houve um silêncio... Será? Desconfiado, perguntou Tom.

Excitado, Wal tenta a concordância da turma e lança-se como responsável: tenho certeza que ele não se importará! Assim, o Tom – pessoa tímida, mas com vontade de participar da viagem, deixa o Wal tomar a frente das coisas – sentindo que se algo desse errado, a idéia e a ação de tudo tenha sido do Wal; os outros estavam lá de contra-peso. E assim foi... O Wal, sentindo sua autoridade crescer diante do grupo, diz em tom certeiro: deixa comigo! Iremos no sábado próximo bem cedinho, lá pelas cinco da madrugada. Dito e feito, todo mundo apronta e Wal passa em suas casas. Continua ele: vai dar para todos descontraírem ao máximo. Irá nos fazer muito bem.

Chegando no dia “S” – sábado – a euforia era visível em todos. Pegaram a estrada, - que não ficava muito longe da cidade e em pouco tempo, chegaram no local tão aguardado. Cabe lembrar que essa propriedade havia sido adquirida há pouco tempo e o Zé – proprietário – ainda colocava tudo nos eixos. Muito a arrumar, ia aos poucos reparando, consertando e trabalhando as coisas; mesmo porque só poderia proceder a todas essas alterações, somente nos fins de semana, já que residia na cidade. O Seu Jota – sogro do proprietário – alumiou a idéia de ficar morando lá, tomando conta das coisas – fazendeiro da velha guarda, hoje aposentado – querendo ajudar, ficou com a missão de encaminhar as coisas na roça. Seria os braços e olhos do Zé enquanto estivesse fora. Dia vai... dia vem... até que n´um lindo fim de semana, aparecem na pacata e tranqüila roça do Zé, os amigos. Ao chegar, fizeram aquela festa! Uma alegria incontida; sem tamanho. Foram recebidos muito bem por Zé - sujeito tranqüilo, gentil, educado e que fica feliz quando a casa está cheia de visitas. Não se podendo dizer o mesmo do seu sogro Seu Jota - homem sistemático, acostumado na lida do campo e que têm a roça como um negócio e não como um parque de diversões – sabedor que seu sossego iria findar por uns dias; vê toda aquela festa meio de lado, com cara não muito boa; falando em tom bem baixo e compassado: Eh! Zé é quem sabe! Ele não sabe o que está fazendo. Ela vai ver!

Entre alegrias e desconforto, a festa continuava...

Risos, brincadeiras, caminhadas pelos morros e trilhas, cavalgadas. Em meio a tanta satisfação, o Tom corria até o carro e retirava as matulas, levando-as para dentro da casa simples, mas acolhedora. As crianças saltitavam como nunca se vira antes, como que agradecendo ao bom Deus pela oportunidade de estarem ali. As mulheres, na cozinha, já preparavam o “dicumê”: uma legítima feijoada, com tudo que se tem direito, feita no fogão a lenha em panela de ferro bem avolumada. O cheiro, andava já bem longe; e a fome aumentava toda vez que reviravam com a colher de pau todos os ingredientes daquela tradicional iguaria mineira.

Parecia muito gostosa... a aparência era a melhor possível! Uma das crianças ao ouvir que seria uma feijoada, tratou logo de perguntar a tia se iriam comer o porquinho “seboso” – porquinho que o primo havia ganhado para criar. A tia, respondendo que não! E com um “ar” de satisfação, disse-lhe que comprara as peças n´um açougue. A criança, satisfeita com a resposta, vai saindo sem questionar.

Horas depois, a mulherada, grita lá da cozinha – junto ao fogão a lenha – oi gente, a comida ta pronta! Vem logo!

Certamente, que ela poderia economizar a fala “vem logo”. Com tanta fome, era lógico que todos iriam o mais rápido possível. E assim se procedeu. Deixaram a cerveja de lado, e se puseram em direção à cozinha; um dando de ombro no outro para ver quem chegaria na frente. As crianças, interessadas nas brincadeiras, já não tinham muito interesse, mas as mães, n´um gesto maternal de preocupação com os filhos, chamava-os com o prato na mão, induzindo-os a deixarem as brincadeiras e se posicionarem para almoçar.

A feijoada estava uma delícia... orelhinha, rabinho, pezinho, carne de sol, paio e até folha de louro. Havia também uma laranja inteira com casca e tudo – segundo as cozinheiras, servia para sugar a gordura, assim a feijoada ficaria mais layt.

Comeram a vontade! Saciaram a fome em pratos bem generosos. O sono naquela altura do campeonato já era notório. Um deitou na rede em baixo da mangueira, o outro, pôs a esteira na varanda, Zé – o dono da roça – correu para o quarto e caiu no sono que seus roncos ouvia-se lá do curral. Lá para tantas, de tardezinha, aos poucos, foram acordando e sem perder tempo, para rebater, mais uma rodada de cerveja – latinhas é bem verdade – mas era cerveja, e estava bem gelada. O Wal, olho grande, não podendo ver nada para comer que tratava de pedir, viu uma das crianças com um copo na mão e dentro um líquido esverdeado; perguntou o menino: o que é isso aí? A criança respondendo que era garapa de cana. Ah! Murmurou ele levantando as sobrancelhas. Foi até a cozinha e lançou mão de um copo grande de alumínio, abastecendo-o daquela garapa que virando na boca, desceu-lhe suavemente a garganta; gosto bom e adocicado, tomaria mais um pouco.

- Como todos sabem, garapa de cana é bem complicado. Fermenta no estômago e dependendo da combinação com outros alimentos, poderá fazer mal.

A noite cai... a escuridão reinava majestosa. O canto da coruja, anunciava que estava à caça de uma presa. Grilos, orquestravam afinados as mais altas notas musicais. E assim a noite caminhava... Como disse no início, o Zé, estava a tempo e a hora, colocando as coisas nos lugares; sem luz elétrica na casa, mas com um potente lampião a gás que ficava no alto da sala, e dali clareava também parte dos quartos e metade da cozinha. Lá para tantas... Wal, com um “inxume” na barriga - herança da comilança o dia inteiro e das cervejadas - parecendo anunciar uma tempestade, não conseguia dormir. Sentindo que aquilo não estava certo, tratou de buscar recursos lá fora já que a casa não dispunha ainda de banheiro. Pensou ele: como vou fazer? Onde ir? A dor apertada cada vez mais, dando a demonstrar se tratar de contrações uterinas. Soava... apertava... não agüentando, levanta-se e procura a porta da cozinha, no intento de não fazer barulho. Rodou a taramela e abriu a porta. Quando estava já do lado de fora, puxou a porta bem de vagarzinho e para azar dele a taramela rodou e a porta fechou-se. Mas a preocupação naquele momento era livrar-se da dor. Pensou rapidamente: não vou no quintal, aí as crianças gostam de brincar; já sei! Vou do outro lado da estrada. E assim aconteceu. Desvencilhando-se do colchete que dava acesso ao quintal, partiu em direção ao local escolhido. Ao chegar, rapidamente, livra-se do calção que vestia e agacha-se já não suportando tanta dor. Na posição de cócoras, concentrado e soando frio, olha para frente mas a escuridão é tamanha que não enxerga nada. Também isso tão pouco interessava, na verdade, em outros tempos interessaria por se tratar de um homem estritamente medroso. Medo de almas penadas, assombração, defuntos e outros. Mas voltando ao caso... quando começava a diminuir aquela dor intensa, dando já graças; ouve um barulho vindo em sua direção; como não podia levantar-se, tratou de “ninhar” ali mesmo; agachou-se ainda mais, juntando os joelhos, esperando só a pancada. O som ia aproximando rapidamente: “pacata... pacata... pacata...” pensou ele: o que será isso meu Deus! Aguardando a hora da pancada, aquilo passou na sua frente para o outro lado. Ao relaxar um pouco a guarda, ouve novamente o mesmo barulho: “pacatá... pacatá... pacatá...”, agora n´um lampejo de coragem, resolveu timidamente dar uma espiada, mesmo que a noite não ajudasse, tentaria ver se via algo. O fez! E como passava aquilo bem perto dele, conseguiu notar uma espécie quadrúpede com rabo e não viu a cabeça por estar ela virada para ele, a silhueta mostrava o corpo e rabo. Pensou logo: é mula sem cabeça! To lascado. O coração em disparada, ameaçava saltar pela boca. A dor na barriga agora era secundária, sua preocupação naquele momento era livrar-se daquele bicho - “a mula sem cabeça”. O que fazer? Quanto ia se levantando, parte da direita para a esquerda novamente: “pacata... pacata... pacata... To perdido! Aquilo passa por ele novamente sem lhe ferir; olha novamente e vê a mesma figura. Pensa rápido: quando ela passar, levanto e saiu disparado para casa. Parecendo que a coisa estava brincando com nosso amigo Wal, vem novamente na sua direção e passa; ele aproveita, levanta-se e sai em disparada no escuro com o coração na boca; chegando ao colchete entra no quintal e tenta abrir a porta; a taramela travou por dentro não dando-lhe condições de abrir a porta; quando ouve os tropeços novamente. No desespero, diz: meu Deus agora ela me pega. Esmurrando a porta e em gritos, acorda Seu Jota que abre a porta e Wal de cata-cavaco entra, quase indo ao chão gritando: fecha! Fecha! Seu Jota sem entender nada, pergunta-lhe: o que está acontecendo? O que você estava fazendo lá fora? Nada! Nada! Responde Wal. Seu Jota curioso e corajoso como sempre, resolve sair e dar uma olhada. Chega até o colchete e verifica que está no chão. Abaixa-se e apanha-o recolocando-o no local. Nesse momento, o mesmo barulho recomeça e vindo em sua direção, aparece a “mula sem cabeça” que na verdade era um potrinho que Seu Jota cuidava, pois sua mãe morrera. Retornando à casa, o Wal questiona Seu Jota: é uma mula sem cabeça não é? Seu Jota, furioso por tê-lo feito acordar, ximga-o: vai dormir ômi, deixa de ser besta. Também fica aí só fazendo barrigada, é isso que dá!

No outro dia... quando todos se levantaram e estavam por ali na cozinha, um deles perguntou o que aconteceu na madrugada? Parecia uns gritos! Seu Jota, olha para Wal e diz: foi essa mula aí. Essa besta. Zé questiona: mas o que aconteceu? Seu Jota, n´um tom de reprovação, acenando a cabeça; deu dor de barriga, foi no mato desapertar, passou o potrinho correndo perto dele, achou que era uma mula sem cabeça. O Wal mais que depressa tenta justificar: mas eu não vi a cabeça dele, então tava com medo, no escuro, achei que era ela – a mula. Todos sorriram e foi uma gozação única, ímpar. E assim ... retornaram à cidade e o Wal ficou rotulado como o homem da mula sem cabeça.