Vinho com toucinho

 

Houve época em que eu saia finais de semana pelas colônias da Região Metropolitana de Curitiba, para passear e comprar gêneros produzidos nos sítios e chácaras, tais como vinho, ovos de galinha caipira, batatas, feijão etc. Nessas andanças, conheci um colono de ascendência italiana, coincidentemente tio e padrinho de um antigo colega do ensino médio e do início da faculdade, que fazia vinhos ótimos, além de ser um excelente papo.

 

O seu Jango passou a ser o meu colono preferido. Algumas vezes por ano, eu o visitava com meus garrafões, para comprar seus vinhos e o que mais  ele tivesse da estação. Ainda hoje, sinto o sabor e o buquê do vinho branco, para mim o melhor de todos. Tratando-se de vinhos coloniais, jamais experimentei outro igual.

 

De tanto propagandear o vinho do homem, às vezes tinha que levar algum amigo para provar e comprar o néctar dos deuses. Foi assim que, numa tarde de sábado, cheguei à chácara com o Sobrinho e o Ricardo, meus companheiros da TELEPAR, empresa onde eu trabalhei muitos anos.

 

Amigos devidamente apresentados, fomos conduzidos pelo simpático bona gente à adega. Assim que entramos, o Sobrinho botou os olhos sobre uma maravilhosa e apetitosa manta de toucinho cru, temperada com sal e pimenta do reino, que curtia seu tempo espetada em um gancho pendente do teto.

 

O italiano, reparando no brilho dos olhos do meu amigo, foi buscar uma afiada faca na cozinha e serviu uma pequena lasca da iguaria para cada um de nós. Indiscutivelmente uma delícia, além daquele visual digno de fotografia.

 

Começamos então a prova dos vinhos. Tinto seco, tinto suave. Rosé seco. Rosé doce. Branco seco e branco suave. O vinho do padre. Graspa. Vinho velho, que o seu Jango chamava de conhaque e não vendia, porque o estoque era pequeno. Desse ele servia apenas pequeníssimas porções para visitas especiais, sem direito a repetição.

 

Logo no início da degustação, o Sobrinho apoderou-se da faca e, entre um gole e outro, tirava uma lasca do toucinho. Foram muitos os goles e fartas as fatias.

 

Vinhos provados e escolhidos, cada um entregou seus garrafões para encher. Conversa animada chegando ao fim, carregamos o carro e partimos, deixando a manta de toucinho um tanto desfalcada.

 

Toucinho e vinho, não importa a ordem, fazem boa rima em qualquer trova ou poesia. Na barriga, nem sempre. Logo que abandonamos a estradinha de terra e pegamos a rodovia, o Sobrinho me pediu para apressar, porque sentia que a dupla estava-se estranhando dentro dele. Perguntei se não queria aproveitar o mato da beira da estrada. Respondeu que dava para esperar até sua casa, mas voltou a solicitar pressa.

 

Exigi do fusca a velocidade que a estrada permitia. De vez em quando olhava para o Sobrinho ao meu lado e o surpreendia retorcendo-se discretamente, tentando dissimular o apuro.

 

- A coisa está descendo mais rápido do que eu imaginava - queixou-se ele mais adiante. Dá para correr mais?

 

- Estou fazendo o que posso - respondi.

 

A estrada, na época, era de pista simples e suportava um movimento intenso de caminhões, apesar de estarmos num sábado. Quando encontrávamos um na subida e com faixa contínua, o remédio era aguentar firme e aguardar a oportunidade para fazer a ultrapassagem segura. Mas quem parecia não aguentar mais era o Sobrinho. Já deixava escapar pequenos gemidos. E eu torcia para que lhe escapassem apenas os gemidos...

 

Quando chegamos à cidade, a situação agravou-se porque a velocidade não podia mais ser a mesma e havia os semáforos para obedecer. Nessas ocasiões, não se encontra nenhum aberto. Todos vão para o vermelho, conspirando contra o apressado. Há que se esperar segundos ou minutos, que parecem horas de sofrida agonia. Eu olhava para o Sobrinho e notava gotículas de suor na sua testa. Ele evitava falar e segurava no “Santo Antonio”, certamente implorando clemência. Ora curvava-se para frente, ora esticava-se para trás, mas não largava da alça protetora fixada no painel do carro, como se ela fosse o elo seguro entre a situação de aperto e o trono urgente.

 

Finalmente chegamos sãos e salvos à casa dele. Ajudei-o com o garrafão e para abrir o portão, enquanto ele empunhava a chave da porta.

 

Despedimo-nos sem delongas e ele avançou rumo à entrada, tentando vencer o amplo jardim o mais rápido que podia. Vinho em uma das mãos e chave na outra. Na metade do trajeto ainda o ouvi gritar:

 

- Espero que dê tempo para chegar...

 

Voltei para o carro, deixei o Ricardo na casa dele e fui para a minha, dando graças por tudo ter terminado bem e não ter acontecido o desastre cuja iminência ficava mais forte a cada semáforo fechado. À noite telefonei para o Sobrinho, para saber como ele estava, preocupado com a possibilidade de o aparente mal-estar passageiro ter evoluído para um desarranjo mais grave.

 

Ele atendeu e, assim que reconheceu minha voz, anunciou pausadamente antes de qualquer coisa e sem que eu perguntasse:

 

- N Ã O   D E U   T E M P O !
 


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N. do A. - Após esse episódio, continuei visitando o colono amigo. Um dia, porém, não fui recebido por ele no portão, como de costume. Um familiar veio ao meu encontro e contou que semanas antes o italiano tombara em pleno exercício do seu sacerdócio, entre videiras e roçados, fulminado por impiedoso enfarte. Ao Sr. João Boaron, o Jango, ali do outro lado da vida, e à sua família, rendo minhas homenagens e agradecimentos pelas tantas vezes que me receberam em sua casa, com a peculiar simpatia dos italianos, na Colônia Mariana, município de Campo Largo, Paraná.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 28/02/2012
Reeditado em 09/01/2023
Código do texto: T3524914
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