De carona no carro fúnebre


Antigamente os carros fúnebres eram montados sobre picapes, em cuja carroceria era adaptada uma plataforma, sobre a qual viajava o caixão. Debaixo dela, permanecia um vão livre correspondente à caçamba original, formando um nicho para transportar os paramentos do velório, tais como castiçais, capela etc.
 
As laterais e a traseira acima da plataforma eram abertas, de modo que a urna funerária permanecesse visível durante o cortejo. Havia ainda uma cobertura que, além de proteger o esquife da chuva e do sol, servia para acondicionar as coroas e flores que homenageavam o defunto. Todos os carros eram pretos com detalhes prateados. Por onde passavam, mesmo vazios, logo despertavam a curiosidade geral, destacando-se no trânsito pacato da cidade. Nos bairros, esses carros eram aviso de morador morto. Quem foi? Será que foi fulano? Ele estava muito doente, desenganado o coitado.
 
Um dos meus tios, muito querido, irmão do meu pai...
 
Um parêntese: quando eu falo nos meus tios, quer por parte de pai ou mãe, não preciso dizer querido. Sou um sujeito de muita sorte, pois os tios de sangue ou agregados que conheci - sou temporão e quando vim ao mundo, alguns já tinham precocemente partido - eram todos muito queridos. Bem humorados, brincalhões, gente fina.
 
Voltando ao assunto, certa vez esse meu tio, então dono de uma conhecida tipografia na Rua Riachuelo, no centro de Curitiba, tomou um pileque memorável na companhia do dono da Funerária Stephan, próxima da casa dele. Aliás, as famílias Stephan e Hey já se haviam unido pelo casamento, em 1899, de Maria Hey com Carlos Stephan,  ela filha de Pedro Hey (o Pedro Hey do Barigui) e Luiza Maurer, ele filho de Joseph Stephan e Thereze Jonscher.
 
Entre umas e outras, os dois amigos meio parentes beberam todas, a ponto de ficarem sem condições de ir para casa pelas próprias pernas. O bodegueiro então telefonou para a funerária e pediu que alguém fosse buscar os arteiros.
 
O encarregado da operação pegou o carro fúnebre e dirigiu para o botequim, que também ficava na Rua Riachuelo. O problema é que o espaço na cabine dava apenas para o motorista e um passageiro. Por conta disso, o meu tio gorducho foi acomodado na plataforma, no lugar do esquife. Sentado não conseguia ficar, foi logo deitando.
 
O carro seguiu desfilando pelas ruas do centro da cidade. Velocidade de enterro a pé, para não perder o carona que viajava atrás. Chamando a atenção de todo mundo, claro.
 
Depois de rodar algumas quadras, virando aqui e ali, estacionou defronte a casa do meu tio, a meia altura da Rua Treze de Maio, para fazer a entrega. Mal parou, veio a primeira vizinha apavorada:
 
- O seu Afonso morreu! Meu Deus, de repente... Tão novo! Vi quando ele saiu, e agora volta desse jeito...
 
O chofer desceu, tocou a campainha. Apareceu a família.
 
Ao se depararem com a viatura do mau agouro, que ninguém gostaria de ver na sua porta, o pânico foi geral. Piorou quando uma das filhas chegou mais perto e reconheceu o passageiro estendido na plataforma, totalmente imóvel.
 
- É o papai! Como aconteceu isso, moço?
 
- Não se preocupem, ele só está dormindo. Deem uma mãozinha aqui, vamos carregá-lo para dentro...

_______
N. do A. - Na ilustração, imagem de um carro funerário antigo captada na Internet.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 27/02/2012
Reeditado em 26/06/2020
Código do texto: T3522791
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.