Uma lamentável falha operacional
 
O meu bairro foi formado predominantemente por alemães, alguns polacos e uns raros italianos. Um açougueiro de ascendência portuguesa apareceu bem mais tarde.
 
Portanto minha infância foi embalada por uma sinfonia de nomes de família oriundos dessas etnias, muitos dos quais ainda estão por lá, denunciando os descendentes dos pioneiros que valentemente resistem naquele chão, antigamente denominado Pilarzinho. Com o tempo, em função dos novos zoneamentos impostos à cidade, foram encolhidos e expandidos limites, de forma que o Pilarzinho foi empurrado lá para o fundão, até a divisa com Almirante Tamandaré, e a parte imediatamente posterior ao Cemitério São Francisco de Paula, reduto da minha família e onde se incrustava a chácara do meu bisavô paterno, foi fracionada entre o São Francisco, Bom Retiro, Mercês e Vista Alegre.
 
Correndo o risco de esquecer outro tanto, atrevo-me a citar alguns desses sobrenomes, incluindo o meu próprio: Hey, Erthal, Dressler, Racoski, Suckow, Heyn,  Haas,  Dittmann, Skroch, Hoeltgebaum, Grochoski, Endler, Trombini, Kugler, Bonde, Kaminski, Wistuba, Klug, Rissmann (sobrenome de solteira da minha mãe), Jurck, Gapski, Denker, Perrini, Griesbach, Nauck, Seegmueller, Kintopp, Kalkbrenner,  Kasezmark, Holdorf, Gunz, Gantzel, Grott, Lysenki, Lohmann, Schaffer, Ballin, Seeger, Kabitschke, Schmidlin, Zonatto, Romfeld, Meissner, Gugisch, Benkendorf, Muncke, Brüsch, Plois, Martins, Milano, Dunajski, Schlotag, Schreiber, Born, Baroni, Grubba, Rauscher (sobrenome de solteira da minha avó paterna), Straube, Mylla, Ortolani, Lachowski, Bernert, Casagrande, Boehm, Cunico, Hauber, Mainka, Chelski, Graeser, Vigo, Moro, Kleina, Krieger, Ogg, Mörking, Millarch.
 
Alguns destes sobrenomes não são propriamente de pioneiros, mas de residentes antigos que chegaram ao bairro através do casamento com filhas de pioneiros, ou por aquisição de terrenos que a eles pertenceram, muitas vezes decorrentes da subdivisão de grandes áreas ou chácaras. De qualquer forma, incorporaram-se ao bairro e participaram da sua história.
 
Contribuindo com seu trabalho e empreendedorismo, suas lutas, sofrimentos e tristezas, alegrias e habilidades pessoais, foram deixando marcas na geografia física e política local e também na memória dos seus descendentes e dos moradores em geral, através de histórias pitorescas e, não raro, engraçadas. Uma delas, que ouvi, ouso tentar reproduzir agora.
 
Provavelmente um ano qualquer da década de 1920. O patriarca de uma dessas famílias, que apesar de alemão não pertencia a nenhum dos meus ramos familiares, havia esticado as horas até tarde da noite tomando umas cangibrinas num dos botecos do lugar. Pronto, colocou-se para casa caminhando com bastante dificuldade, muito mais pelo excesso de álcool do que pela idade avançada.
 
À medida que vencia o trajeto, o ancião ia sofrendo com certo incômodo abdominal, que aumentava desesperadamente a cada passo, dado a duras penas. Andava lento e a barriga reclamava a velocidade que as pernas não podiam atender. A coisa foi ficando cada vez mais crítica. Tratava-se literalmente de uma guerra intestina que precisava ser vencida em pouco tempo, para não se transformar em indesejável e vergonhoso desastre fisiológico.
 
Ao entrar na sua rua, de um único quarteirão, segurar o apelo implacável da natureza tornava-se cada vez mais difícil. Tentava apressar a marcha, mas as pernas não obedeciam. Dava um passo à frente, um para o lado e outro atrás. Dançava no meio da rua e não saía do lugar. Aliás, saía, mas não para frente. Ora ia para um lado, ora para o outro. Melhor andar devagar, mas manter a rota, ganhar terreno e procurar vencer o inimigo na privacidade do lar.
 
Faltando três ou quatro casas para a sua, viu-se rente a um muro providencial. Baixinho, fácil para se acomodar. Um socorro em boa hora, tendo em vista que andar ligeiro não conseguia e se acocorar seria impossível.
 
O vizinho que o perdoasse, mas tinha de ser ali mesmo. O organismo sofredor já dera o último aviso.
 
Arriou as calças até os joelhos e quase sem dificuldade sentou-se no murinho. Pés ligeiramente acima do solo, voltadas para a rua, e a bunda inteira dentro do jardim. Dorso inclinado para frente, o suficiente para manter o equilíbrio. Cruzou as mãos adiante dos joelhos, abrindo as pernas tanto quanto possível, e apoiou os cotovelos no meio das coxas.
 
Sentindo-se seguro e razoavelmente confortável na posição, deixou a natureza agir e cumprir o seu destino. Para isso não precisou despender nenhum esforço. Nem uma forcinha sequer. Apenas afrouxou.
 
Totalmente aliviado, experimentou uma agradável sensação de calma. Afinal, a pátria estava salva - ele pensou contente.
 
Permaneceu ali por alguns instantes, aproveitando a latrina improvisada, tal qual um guerreiro satisfeito após vencer uma batalha decisiva. Nada como a barriga livre da pressão de teimosos movimentos peristálticos a clamar emergência em hora errada. Tudo agora era paz e tranquilidade. Voltava a ter o domínio completo da situação.
 
Todavia a agradável sensação de bem-estar durou pouco. O  velho passou a sentir um calorzinho nas nádegas. Uma irradiação morna do centro para cada uma delas. Mexeu-se com cuidado, inclinando o corpo lateralmente. Primeiro para a direita, depois para a esquerda. Percebeu um pequeno peso querendo soltar-se pela força da gravidade, mas impedido por alguma sustentação que o mantinha praticamente grupado ao traseiro. Aos poucos, o relaxamento foi dando lugar a nova tensão. Uma dose mista de agonia e angústia assumia dimensões assustadoras e preocupantes. Crescia a desconfiança de que havia cometido alguma falha na operação urgente de aliviar-se.
 
O torpor etílico complicava-lhe as ideias. Por isso, o pobre homem demorou um bocado para concluir que de fato havia abaixado as calças, mas as ceroulas não.


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N. do A. - Na ilustração, Homem Velho Sentado de Ferdinand Hodler (Suíça, 1853-1918).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 11/02/2012
Reeditado em 12/01/2022
Código do texto: T3493306
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