O mistério da mula sem cabeça

 

Segundo a lenda do folclore brasileiro, toda mulher que se atreve a namorar um padre, transforma-se na mula sem cabeça. Geralmente preta ou marrom, aparece para aterrorizar o povo, sempre na madrugada da Sexta-Feira Santa, com fogo no lugar da cabeça.
 
Pois no meu bairro do final da década de 1920, deram para falar de uma mula sem cabeça. Diziam que ela era vista entre as árvores junto do Cemitério Municipal, mais ou menos na altura de onde hoje estão as Capelas da Luz.
 
O curioso é que a Semana Santa ficara para trás havia meses e a besta continuava aparecendo naquelas paragens. O caminhante vinha tarde da noite pela avenida principal e, antes mesmo de chegar à curva do cemitério, já ia sentindo arrepios percorrendo o corpo e eriçando todos os pelos em ondas de pavor. Alguns arriscavam uma olhadela em direção ao local do suposto aparecimento. Mesmo quem não via nada, ou nem olhava, apertava o passo. Quem via, contava no dia seguinte.
 
Uma noite, o meu pai, então jovem e destemido (ou sem juízo), voltava do centro da cidade e ao atingir a curva do cemitério lançou o olhar para o ponto certo. Altas horas, e o bicho estava lá. Desta vez meu pai era a testemunha. Ou a vítima.
 
- Então é verdade! Ela existe, está bem ali...
 
O primeiro impulso foi de acelerar. No entanto, venceu o ímpeto e parou para observar melhor. Calculou que estaria fora do alcance de qualquer investida e, caso ela acontecesse, teria tempo para correr com larga vantagem.
 
Lá no fundo, a mula sem cabeça imóvel. Uma lua de quarto crescente permitia ver o corpo, o rabo, as pernas. Não tinha cabeça. E fogo não saía de lugar nenhum. Mas ninguém havia dito que essa mula sem cabeça expelia labaredas.
 
- Mas nem uma faísca?
 
- Só acende quando está brava e agride. Concluiu.
 
Encorajado, talvez pela curiosidade, ou quem sabe por umas doses de Fogo Paulista que eventualmente teria bebido na cidade, resolveu tirar a história a limpo. Foi aproximando-se devagar e com cautela. Pé ante pé, amassando suavemente a relva umedecida pelo sereno. Parava um instante e em seguida continuava. Temia espantar o animal e provocar a ira da besta.
 
Conseguiu chegar bem perto. Prendia a respiração e sentia o coração acelerado. Corajoso, mas nem tanto.
 
Pressentindo a presença de um estranho no pasto, o quadrúpede saiu da imobilidade. Troteou leve uns dez ou quinze metros e parou. Voltou-se ligeiramente na direção do estranho.
 
Meu pai, então, viu-se frente a frente com a mula sem cabeça. Só os dois, mais ninguém.
 
Encarando a criatura, o valente se libertou de toda a tensão acumulada, de uma só vez, e riu sem censura. Deixou-se sentar na relva molhada e permaneceu ali por alguns instantes, contemplando o animal e pensando na forma de contar isso no dia seguinte. Imaginava as caras dos ouvintes incrédulos. Nem ele estava acreditando.
 
Com coragem e medo alternando-se, acabara de desvendar o mistério dessa mula sem cabeça, que aparecia quase colada ao muro do Cemitério Municipal e vinha alimentando o imaginário popular no bairro.
 
Tratava-se apenas de um cavalo castanho. O equídeo, que não era nada bobo, descobrira o conforto da forquilha de uma velha árvore. Nela encaixava a cabeça para descansar após um dia de trabalho duro e um lauto pastejo de capim fresco no jantar.
 
Quem olhava da rua, enganado pela perspectiva, e no escuro, tinha a impressão de que o animal era acéfalo. Além disso, a proximidade com o cemitério dava o clima. Bastou alguém cometer o equívoco e dar a notícia, para a história se espalhar como rastilho de pólvora, adquirindo os contornos fantásticos da visão da mula sem cabeça.
 
Mas era só um cavalo castanho. Nada mais.


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N do A. – Na ilustração, Mula sem Cabeça de José Cláudio (Pernanbuco, 1932).

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 06/01/2012
Reeditado em 17/02/2022
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