076 – A SOMBRA DA MORTE...

Quando menino sempre gostava de ficar entre as pessoas idosas, calado, ouvido atento a tudo que contavam, sempre gostei de ouvir causos, que fosse da mula sem cabeça, da onça pintada, do tiroteio na venda do estradão, do estouro da boiada...

Minha avó Sinhãna Teixeira, sabendo da minha queda por causos, sempre contava acontecidos daqueles tempos que naquele tempo já eram velhos tempos:

- A Vó vai contar um causo, eu tive um irmão que se chamava Jesualdo Teixeira, homem perigoso, fera em forma de ser humano, sombra da morte que caminhava pela terra no triste ofício de ser um assassino de aluguel, desaparecia por certo tempo, quando voltava pra sua casa, trazia sempre um bom dinheiro, e muitos objetos na certa roubados de suas vítimas.

Cão servil dos coronéis, que usavam da sua crueldade para assassinar empregados rebelados no desacerto das contas, ou confrontantes em disputas de terras, naquele sertão as cercas das fazendas tinham pernas, no anoitecer avançavam sobre as terras do vizinho mais pobre ou de menos coragem para o enfrentamento.

Num belo dia meu irmão que era de pouca conversa, na varanda da minha casa se deitou na rede, fumando um cigarro de palha que ele pacientemente fez, depois de longas baforadas, cuspiu pra longe um sarro enegrecido, mau cheiro a exalar, se pos a conversar.

– Eu fui lá pras bandas do Brejo Grande, a serviço do coronel Medeiros na encomenda de um confrontante que se recusava a vender sua fazendinha na oferta ofertada, tinha que fazer o serviço completo, dar sumiço nele e em toda a sua família! Lá chegando me deparei com uma tapera, coisa medonha de se ver, lá de dentro saiu um preto barbudo, um tanto cabeludo, poucos dentes na boca, vestia farrapos de roupas, tão humilde que seus olhos caídos no chão pra responder o perguntado, apiei do alazão, a peixeira ao alcance da mão, sempre gostei de matar um homem é na peixeira, furar, rasgar carnes, tirar o couro, até capar (castrar) só pra ver na dor o cabra mijar e jogar pra fora o barro podre das tripas.

Não sei por que tive pena daquela alma tão sofrida, eu disse pra ele que abandonasse a sua fazendinha, que se retirasse pra bem longe, pois o coronel queria aquelas terras, o Preto murmurou que não tinha pra onde ir, com sua mulher e quatro filhos! No seu rosto escorria grossas lágrimas, homem não chora assim nas facilidades, no seu fraquejar a sua sentença de morte assinei já sem pena alguma, quando ele com os trapos de sua camisa enxugava aquelas lágrimas, enterrei a minha peixeira naquela barriga seca, couro duro ele tinha, minha faca bem afiada nas suas entranhas o aço revoltei de um lado para o outro, ele caiu de joelhos, nos seus olhos temor algum demonstrava, nem um só traço de dor ou desespero, me ignorava por completo, levantando seu rosto para o céu entre lágrimas humildemente suplicou:

- Senhor Deus Pai, tenha piedade da minha mulher e dos meus filhinhos!!

Minha irmã aquela expressão do seu rosto, tal qual um santo martirizado grudou no meu pensar, de já derrubou toda a minha valentia, fiquei até desprovido de força para sangrar o homem e ele foi se encurvando lentamente e no cair bateu com boca nas minhas botas, emporcalhando elas de sangue.

Ao entrar naquela tapera pra terminar o serviço, minhas forças já destroçadas, a faca tremia na minha mão, fraqueza nunca sentida neste meu lidar, num canto encontrei amontoados uma mulher também negra, que abraçada em seus filhinhos chorava baixinho, quase nus, pedaços de panos rasgados e encardidos cobriam suas vergonhas, contorceu meu coração em arrependimentos, tirei a mulher pra fora e apontei a estrada, coloquei em sua mão todo o dinheiro que recebi pra matá-los, que fugissem pra bem longe, pois poderia arrepender-me de ter poupado a vida deles, e eles desembestaram no perder lá longe onde as copas das árvores se misturam com os bordados do céu.

Minha irmã, não consigo mais dormir, quando fecho os olhos eu vejo o negro olhando para o céu pedindo clemência pra sua família, aquela imagem dia e noite a gotejar no pensar, estou enlouquecendo!

Meu neto veja o final da história, meu irmão o Jesualdo tinha que pagar pelos seus crimes, quando deitava acordava aos gritos que o negro estava ao seu lado, das vezes nas altas horas da noite dava tiros pra todos os lados, passou a dormir com as lamparinas acesas, tudo em vão o fantasma atazanando e cerceando no enlouquecer, suas crises foram piorando, piorando, quando por fim, internaram ele lá no hospício dos loucos, onde de vez enlouqueceu, amarrado tal qual fera perigosa, não mais se alimentava, naquele corpo não restava carne alguma, um esqueleto coberto de uma pele corroída de feridas fétidas e incuráveis, morreu na sua loucura, com os olhos esbugalhados, boca escancarada, ensangüentada, pois no desespero último estraçalhou a sua língua em mordidas ensandecidas, seu rosto tal qual uma máscara assustadora todos no evitar do olhar o caixão foram logo fechando, e ele na certa no penar foi viver na companhia daqueles tantos que ele a vida tirou...

Abracei a minha avó no despedir apressado e assustado, tive pressa pra minha casa voltar, aquele causo na cabeça ainda desenrolando, a noite se fez longa no meu pensar, vivi momentos de terror no recordar do irmão da minha Vó, da sua crueldade, da loucura e da expressão mortuária do seu cadáver!!

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 25/06/2011
Reeditado em 25/04/2012
Código do texto: T3056553
Classificação de conteúdo: seguro