060 - A DOBRADINHA...

Certa vez fomos pescar lá no rio Paracatu, norte do estado de Minas Gerais, mais precisamente na fazenda do Senhor Didi, o caminho é longo, passa-se por Uberaba, Nova Ponte, Patos de Minas, no entroncamento da estrada que liga Brasília a Belo Horizonte, cidade do melhor cronista do nosso querido Recanto das Letras, o estimado poeta Roberto Rego, com a estrada que liga Uberlândia a Buritizeiros, existe um pequeno povoado que no mapa tem o nome de Luislândia do Oeste, mas seus moradores dizem que se chama Pirapatos.

Mas não vamos entrar nesta arenga, seguindo a viagem mais ou menos uns vinte quilômetros antes de chegar a Buritizeiros, deixa o asfalto e segue à esquerda por uma estrada de terra batida de antigas velhices rumo à cidade de Brasilândia, estrada outrora famosa no campeio de grandes boiadas, passa-se em uma ponte sobre o Rio do Sono, em um dos lugares mais belos que já vi, o rio hoje minguado face ao contínuo desmatamento de suas margens, no rolar dos milhares de anos entre pedras negras esculpiu lindos monumentos, cenário de épicos acontecimentos tão bem descritos no famosíssimo livro Grande Sertão – Veredas, do nosso inesquecível escritor João Guimarães Rosa.

A seguir a estrada tem uma mania distinta, nos oferece uma poeira finíssima, parecida com o talco, que no desconforto a gente segue rápido para logo dela se livrar, lá na frente em um outro entroncamento tem uma venda, em nossas andanças notamos que as vendas estão desaparecendo, hoje quase todas fecharam, mas era um lugar aprazível de se parar, comprava-se de um tudo, queijo, lingüiça, carne de sol, rapadura, ovos, cachaça para quem gosta, ou para quem gosta de presentear...

O que importa é que um companheiro de viagem colocou dentro da caixa de gelo um pacote de aproximadamente uns deis quilos de dobradinha (bucho de bovinos) da qual ele alardeava altas qualidades da sua culinária, cá entre nós, eu pessoalmente detesto esta tal da dobradinha.

Depois da venda segue pela estrada que bifurca à direita, vai descendo por um trecho arenoso onde ao menor descuido se encrava naquele areal, e no contínuo seguir até esbarrar no Rio Paracatu, lá chegando é aquele corre corre para montar o acampamento, e todos na pressa da pesca, ninguém mais se lembrou da famosa dobradinha...

Anoitecido alguns sertanejos da vizinhança foram chegando, acanhados, tímidos, mas só no início da conversa, gostam de uma boa cachaça, servidos à vontade, logo jantam e tornam inseparáveis se oferecendo para todos os serviços, ora traziam frangos já limpos para o jantar, ora traziam um peixe chamado cari (cascudo) para o pirão... Mais nos presenteavam do que tínhamos para oferecer...

Logo passavam a trazer os filhos, ávidos por um refrigerante, balas, meu Pai que gosta de agradar tudo ia oferecendo de bom grado... Confiança firmada, amizade sacramentada, traziam também as esposas e filhas que antes não davam as caras, fogueira acesa, lua alta brilhando, causos e mais causos, tudo no profundo respeito, até no olhar tinha-se o cuidado para não melindrar ciúmes, éramos a novidade naquele sertão de gente tão sofrida, belas moças que quando sorriam mostravam poucos dentes na boca, ou dentes terrivelmente carcomidos pela cárie...

Esse nosso Brasil precisa melhorar muito para acudir toda esta gente...

Dizia meu Pai sempre cheio de generosidades, eu gosto mesmo é de ficar observando os detalhes, sempre gostei de ouvir causos... Passaram seguramente uns oito dias, quando o gelo diminuído na caixa deixou à mostra a fatídica dobradinha, e o nosso amigo com o pacote nas mãos exibia a todos dizendo que era uma da melhores comidas que existia, convidou a todos para virem almoçar no outro dia que era um domingo...

Sempre digo que a desgraça tem o seu lado cômico... Domingão rolando, várias panelas no fogo, dobradinha fervendo, cheiro alto esparramado convidando a todos para servirem, todos elogiando a tal dobradinha, meu Pai, companheiro de tantas jornadas, mesmo sabendo que eu detesto dobradinha, trouxe-me no agrado um prato da tal comida que cheirando senti levemente azeda apesar de tantos outros condimentos ali colocados.

O cheiro do ranço era suave, mas a dobradinha estava rançosa, disfarçadamente inclinei o prato para o mato e deixei escorrer tudo que nele tinha...

Dizendo satisfeito fui pescar nas proximidades de uma corredeira, na verdade queria ficar longe daquela dobradinha...

De longe pude ver os sertanejos indo embora com suas famílias, o nosso pessoal cuidando do acampamento, as matrinchãs atacando as minhas iscas, estava me divertindo...

Num repente vi meu Pai, descendo no apressado o barranco e se ajoelhou...

Nem bem tinha ajoelhado já estava vomitando...

Um outro amigo o Chico Surdo desembestou ribanceira abaixo nem conseguiu ajoelhar, caiu de quatro pés, boca rente a água também vomitava dando grandes gemidos, de longe não sabia se dava risadas ou se me preocupava ao ver todos os meus amigos vomitando dobradinha pra todos os lados...

Desgraça pouco é bobagem...

Anoitecido aí sim que a coisa ficou preta, pica pau fugiu do oco, hora da onça beber água, durante a tarde vomitaram, mas à noite deu uma diarréia das mais violentas e inesquecíveis, nas primeiras idas ao mato dava tempo de abaixar as calças, mas no seguir uma água fétida escoria pernas abaixo, e em alguns chegou até encharcar as botinas no sem tempo algum para o abaixar das calças...

Olha! Foi uma cagadeira a noite toda...

Amanhecido o dia, todos amarelicidos do esforço da cagança, um mau cheiro terrível na vizinhança atraia toda a sorte de moscas...

A margem do rio se transformou em uma lavanderia, lavando lavaram as cuecas, calças, botinas, lençóis, até cobertores estavam lambuzados daquela água amarronzada, fétida...

Sol nas alturas, almoço servido, arroz, feijão e um ovo frito não faz mal pra ninguém, todos enfraquecidos no apetite, repugnavam em novas ânsias de vômitos só de olhar nas panelas, lembranças do acontecido, foi quando alguém se lembrou dos sertanejos que sempre apareciam para almoçar...

Na certa estão ocupados virão para o jantar...

No jantar um silêncio amedrontador, não apareceu um só capiau...

Nem no outro dia, muito menos no outro, no terceiro dia à tardezinha apareceu um, todo desajeitado, um tanto sem palavras, sem apetite algum, não pediu cachaça, peixe frito na mesa não buliu...

Por fim não agüentei:

- Amigo! Coma alguma coisa!

– Quero não, a gente pobre não é acostumada com essa comida paulista!

– O que aconteceu?

– Paulista, aquela tar de enroladinha, comida venenosa aquela, cruenta, quase matou nóis todos, a gente num ta preparada pra essas modernidades, a gente cagou tanto, mais cagou tanto, escorria pernas abaixo no final, nas crianças, nas moças, nas mulheres, em todos nóis, comida de paulista é muito forte, muito tempero, destemperou as nossas entranhas! Juramos pelo nosso Padim Ciço que nunca mais, mas nunca mais a gente come desta tar dobradinha... Aquela comida rançosa conseguiu espantar toda aquela gente do nosso acampamento, na certa envergonhados pela brutalidade daquela caganeira...

Tudo ficou triste, silencioso, não tinha mais os causos pra se ouvir, sem contar que o nossos companheiros queriam porque queriam matar afogado aquele que trouxe a fatídica dobradinha, não conseguindo o apelidaram de Dobradinha, durante vários dias no seguir, no limpar dos peixes, sabe o que a gente mais se encontrava na barriga deles??

Dobradinha!

Aquela mesma vomitada dentro do rio, os peixes que gostam de trato azedo...

Na certa adoraram...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 24/05/2011
Reeditado em 13/04/2013
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