047 - DON QUIXOTE PAPAMEL

Eu sempre falo de pescarias é porque adoro estar na beira de um rio acampado, anoitecido, lua alta a tudo clarear e encantar, fogueira acesa e em sua volta sentados todos os de lá e todos os de cá, cada um contando os seus causos na certa aumentados, e este relato aconteceu num arraial chamado Sambaibinha, terra do meu amigo Joaquim Baiano, município de Buritizeiros, lá no norte do estado de Minas Gerais, barrancas do rio São Francisco, sertão este visitado pelo nosso querido e inesquecível João Guimarães Rosa.

Assim que acampamos caiu um toró de águas sem medidas, má sorte, maus pressentimentos, saudades de casa, tudo enlameado, a chuva mais forte caiu lá pelas bandas do rio Abaeté que com suas águas barrentas turvou o velho Chico.

Cansamos de pegar um peixe desajeitado de todos os lados, não tem um só lado nele que você não se esbarra em serrilhas e esporões, o abutuado, e para complicar mais este peixe desaforado engolia nossos anzóis que somente após uma operação cirúrgica conseguíamos reavê-los.

Cansou nossa paciência, cada companheiro saiu pelas barrancas a admirar as belezas naturais, mas tem sempre aquele que gosta de aparecer, este fez amizade com os sertanejos e deles conseguiu um cavalo emprestado e pelo mato fechado foi se aventurar. De volta ao acampamento, todo apressado, foi logo garganteando que encontrara no tronco de uma gameleira uma imensa colméia de abelhas e que ele era louco por mel, a todos convidava para ajudá-lo nesta empreitada de pouco ou nenhum juízo.

O satanás e sua corja na certa apoderaram do pensamento do rapaz, e alguns matutos no gosto do mal feito compraziam no obedecer fielmente as suas ordens no ajuntar da indumentária necessária para o enfrentamento.

Fomos todos acompanhando o nosso valentão dos valentões, o mais destemidos dos destemidos, que ao ver os nossos receios falava como se estivesse no alto de um pedestal cantando em versos os seus feitos e antecipava a vitória.

Ao nos aproximar da dita gameleira, de longe se ouvia um zuuuummmmmmmmmmmmmm, mais parecia com um transformador elétrico destes que ficam pendurados nos postes que antes de explodir costumam zunir sinais de tragédia, e todo aquele zunido nada mais era que milhares de abelhas africanas antecipando avisos e ameaças.

Nosso intrépido guerreiro, homem tão destemido e tão imprudente no uso de vários sacos feitos de finas telas plásticas usados para guardar peixes, vestiu-os em sua cabeça, e usando tiras de espumas de velhos colchões abandonados nas barrancas do rio forrou cuidadosamente sua cabeça na defensiva contra o ataque certeiro que viria, varias camisas de pano bem grosso, luvas de couro, varias calças sobrepostas, botas de canos altos até os joelhos, por entre camisas e calças mais espumas enfim de longe quem o visse juraria estar vendo uma assombração, uma criatura do outro mundo, mas nele eu vi Don Quixote de la Mancha, do magistral livro de Miguel de Cervantes Saavedra, na falta do juízo, na imaginação exacerbada e na intrepidez insana se pareciam.

– Com esta indumentária não temo a abelha alguma, estou completamente defendido de suas picadas! Vou aproximar da colméia e com este varejão em cuja extremidade tem a pá de um remo amarrada, vou golpear os favos de mel e derrubá-los, depois é só recolher e lambuzar os beiços de mel!

– Sun Tzu, o grande general chinês autor do livro A Arte da Guerra, dizia que antes de uma batalha igual a esta, tem que se equipar da melhor maneira possível, conhecer o inimigo, conhecer o terreno aonde será travada a batalha, iniciar a luta na melhor hora do dia, e ter sempre em mente caminhos para uma possível retirada, acrescentei.

– Bobagem! Bobagem! O que esse chinês entende de abelha? Comigo não tem essa de retirada não! Empolgou a todos com a sua valentia garganteada nas alturas no impressionar, o sertão parecia até o Coliseu romano onde o mais famoso gladiador iria combater milhares de bárbaros.

– Deus tenha piedade desta alma desmiolada. Ouvi a voz do So Joaquim Baiano. Nosso herói avançou levando na mão o varejão, sua lança matadeira, na dificuldade no lento arrasto dado tantos apetrechos amarrados por todo o seu corpo, capengava.

– Amigo desiste desta bobeira, mel a gente compra no supermercado! E lembre-se que por melhor que seja a sua indumentária ela sempre terá um ponto fraco, um ponto vulnerável!

– Desistir? Ponto vulnerável? Vãs palavras dos fracos e medrosos na inveja pura das proezas que sou capaz... Arrotou outras inúmeras palavras, alto falando no impressionar a todos.

Na certa ele nunca leu o livro de Sun Tzu, o terreno onde ficava a tal gameleira com a colméia era rodeado por um intrincado espinharal trançado por cipós também espinhentos, capim navalha que só de triscar já retalha, malícia, unha de gato e mais uma arvore em centenas chamada esporão, nome este dada à quantidade de espinhos que ela carrega em seus galhos.

Nosso amigo possuído pelo capeta e todos seus sequazes estava irredutível, e se aproximou da colméia para o combate, olhou para os lados para certificar que todos os olhos estavam voltados para ele, avançou... A luta ia começar, sertão em guerra, de um lado zuniam as abelhas, do outro lado fungava o nosso herói em meio daquela indumentária no calor tremulante do vale do rio, cenário de tantas batalhas tão bem descritas pelo nosso inesquecível João Guimarães Rosa, em seu monumental livro Grande Sertão Veredas, as abelhas zuniam... Nosso herói fungava, avançou, iniciava o combate... Deus tenha piedade!

Quixotescamente num passo rápido, já sendo atazanado por todos os lados pelas abelhas, nosso herói avançou mais célere. Ah! Mas veja que a desgraça em montes inimagináveis atracou nas suas pernas, no passo mais rápido e a poucos metros da colméia seus pés se enroscaram em raízes e cipós pelo chão aos montes e não visto em face ao estranho elmo que levava sobre a cabeça, desequilibrado e açoitado por ferrões por todos os lados, a indumentária ainda resistia e o protegia, mas o golpe da má sorte aconteceu, nosso herói lutava para se manter em pé e no esforço supremo para se livrar do enrosco que o impedia de avançar, balançou, desequilibrou e o nosso Papamel de barriga estatelou no chão por entre capins e gramas e espinhos, foi neste momento que ele descobriu, tardiamente que havia um ponto vulnerável em sua indumentária, no cair de barriga e braços estendidos para frente, sintam a tragédia...

Seu traseiro ficou à mostra, seu bum bum, suas morangas, suas nádegas... E as abelhas não perderam tempo, centenas delas atacaram no desapiedado ferroar no bum-bum do nosso herói que na certa nem se lembrou do general chinês, rolava que rolava na inútil tentativa da defesa do seu bum bum, desesperado pela dor e com o traseiro pegando fogo, deu por perdida a batalha, a superioridade do inimigo era incontestável, debandou, um herói morre mas não foge do campo de batalha, covardemente o nosso na corrida desembestou, a luta agora era para salvar a vida, sem rumo e sem mira embrenhou pelo espinheiro e as abelhas no perseguir atacando e tome mais ferroadas:

- Caramba! Qui revestréis! Neste espinharal nem anta perseguida pela onça pintada se aventura em passar! Na algazarra reconheci a voz do So Isáque, velho caçador de veados.

Na retirada vexatória nosso ex-herói ainda porfiando com as abelhas, para os espinhos foi perdendo partes da indumentária confiscada pelos galhos dos esporões, lá ficaram por um longo tempo penduradas no balançar contando ao vento passante as estripulias do nosso já desafamado Papamel.

Corremos todos no atropelo pela estrada encontrando nosso ex herói em um descampado no chão desmaiado, uma respiração esquisita, parecida daqueles animais degolados, estremecia, arfava e expelia uma gosma amarelecida, coisa de assombrar, conseguimos desenrolar a língua do infeliz, e o Mané da Mariquinha, muito constrangido foi fazendo uma desajeitada respiração boca a boca o que deu muito o que falar, colocamos o rapaz no banco traseiro da caminhonete e a toda pressa deixamos o vale do velho Chico por uma tortuosa estrada de chão, logo alcançamos o asfalto, tomamos o rumo da cidade de Buritizeiros-MG...

Nosso ex-herói, o Papamel, parecia mais morto do que vivo... Será que ele conseguirá sobreviver? ( Este causo continua em um outra noite enluarada, em volta de uma fogueira...Aguardem!)

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 30/04/2011
Reeditado em 11/05/2011
Código do texto: T2940603
Classificação de conteúdo: seguro