O DIA EM QUE JOÃO MORREU...

O ano era mil novecentos e oitenta e pouco.

João chegou ao salão por volta das dez às onze horas da noite. E como todo fim de semana, aquele dia estava lotado. Pensou: é hoje que vou me divertir como nunca!

Sua esposa, Rosinha, ao lado, como sempre, não estava tão animada quanto ele.

— Que foi, amorzinho? — perguntou. — Você nunca fica contente quando a gente vem aqui?

— É que eu não gosto desse lugar, João — revelou ela, enfim. — Vamos embora! Eu tou sentindo uma coisa meio estranha, sabe...

Ele ficou um pouco preocupado, mas depois falou sorrindo:

— Deixa disso, mulher! Você sempre fala isso! Vamos dançar e esquecer essas bobagens.

— Tá bom, João! Você tá certo mesmo. Eu é que fico imaginando coisas...

— Então vamos cair na dança porque a noite está apenas começando!

Rosinha era daquelas mulheres que não conseguem dizer não. Ainda mais pro seu marido que era a coisa que ela mais amava na vida. Fazia de tudo para agradá-lo, até mesmo indo naquele salão que detestava.

Todo o final de semana era aquela angústia. Ela não sabia o que era. Mas um medo cortante de que alguma coisa ruim pudesse acontecer naquele salão lhe invadia a alma a cada vez que frequentava aquele lugar.

Não era medo provocado pelo ciúme. Apesar de ser um homem muito bonito e cobiçado pelas mulheres, sabia que era muito fiel a ela. E confiava extremamente nele. Mas seu coração ficava atônito sempre que vinha naquele salão. Qualquer outro lugar ela se sentiria a vontade menos ali. E foi a partir de um sonho — que ela preferia não relembrar — que tudo isso começou.

Ele gostava muito de dançar. Costumava dizer que era sua grande paixão, depois de Rosinha, é claro. Sempre com o seu jeito elegante de si vestir, encantava a todos, principalmente o público feminino. Todas as mulheres queriam dançar com ele que fazia questão de atender a todas com muita educação, sempre com a permissão de sua amada. Mas havia uma pessoa em especial que ele adorava dançar: dona Celeste. Era uma professora de dança amiguíssima da família. Toda vez que vinha ao salão, e isso acontecia quase todos os finais de semana, ele tinha que dançar com ela. Era sagrado. Ela dançava tão bem quanto ele. Quando se juntavam então... O salão inteiro parava para observá-los e no final todo mundo os aplaudia com o maior entusiasmo.

Assim que entrou ao salão, ele a pegou pela mão e começou a dançar. Passava um funk de James Brown, Get on the Good Foot e ele, particularmente, adorava as canções de James Brown, apesar de não ser muito condizente com a sociedade da época.

Foi ao bar, pediu um drinque e voltou a dançar com a sua esposa. Estava feliz como se alguma coisa extremamente importante tivesse acontecido ou ainda por acontecer e ela não queria estragar a sua felicidade. Por isso, pediu-lhe que a pagasse uma bebida para desflorar os nervos.

— Quero que meu amor divida essa alegria comigo! — Pensou.

E assim, mais algumas doses e ela ficaria completamente bêbada. Por isso, resolveu parar. No entanto, João continuou bebendo, apesar de não ser muito fã de bebida alcoólica.

Já se passava das duas da manhã quando ele decidiu ir ao banheiro. Estava meio zonzo, mas deu pra perceber quando uma mulher aproximou-se e tocou em seu ombro.

— Moço, eu gostaria de falar com você.

— Quem é a senhora? — Perguntou, pensando ser umas das suas admiradoras. — Minha esposa está ali me esperando e eu não tenho...

— Eu sou a mulher do seu Ernesto — interrompeu-o ela.

— Seu Ernesto?

Ele não lembrava de quem se tratava.

— O rapaz da olaria que os bois do senhor invadiram aquele dia, lembra?

— Ih, já vêm vocês de novo com essa história? — Aborreceu ele, assim que descobriu de quem ela falava.

O caso era o seguinte: João tinha uma fazenda perto de uma olaria de um homem chamado, como já foi apresentado, Ernesto. Certo dia, os bois do fazendeiro quebraram umas cercas e foram parar na olaria do tal homem, quebrando assim, vários tijolos e telhas ali expostos. O tal homem se sentindo prejudicado foi falar com João. Esse, por sinal, o tratou cordialmente enquanto o outro bravateava palavrões de todo o tipo, dizendo que se acontecesse de novo, ele iria matar todos os animais que se atrevessem tal façanha novamente.

João era considerado por todos como um homem muito educado e prestativo. Mas, por outro lado, tinha fama de corajoso e justiceiro, e era muito respeitado naquela redondeza. Além do mais fora delegado por mais de dez anos por aquelas terras.

Todos o conheciam e respeitavam-no, exceto aquele homem...

Aquela não fora a primeira vez. Teve uma época que ele invocou que uma parte estreita do terreno pertencente a João, como constava na escritura, seria na verdade seu e cercou-o tomando para si. João não importou muito. Afinal, possuía bastante terra e aquele pedacinho não lhe faria falta.

Por isso, após ouvir desaforadamente dele que mataria os animais, João o desafiou:

— Você não seria homem o suficiente pra isso.

— O senhor não me conhece... — disse ele.

— Muito menos o senhor conhece a mim, seu Ernesto — respondeu João em desafio.

Pouco tempo depois, os bois voltaram a visitar a fazenda do tal Ernesto, mas dessa vez sem fazer nenhum estrago. Ele não cumpriu o prometido, mas xingou o ex-delegado de todo o tipo de palavrão. E ainda fez uma nova ameaça: em vez dos bois iria matar o dono da boiada. Mas uma vez a resposta de seu João foi a mesma:

— Você não seria homem o suficiente pra isso, seu moleque.

E assim, alguns dias passaram até... acontecer o encontro com aquela mulher no salão.

— Olha moço — disse ela –, eu não vim aqui brigar com o senhor. Pelo contrário. Vim alertá-lo.

— Alertar de que?

— Meu marido tá vindo pra cá. E disse que vai te matar. É melhor o senhor ir embora porque ele não tá brincando.

Ao ouvir isso, João irritou-se:

— Pois diga pra aquele merdinha que vem aqui me matar. Moleque não mata homem não. Só fala isso pra ele.

E saiu em direção ao banheiro, como era da sua intenção anteriormente. Chegando lá, tirou da cintura sua arma e verificou se tinha bala. Para sua alegria, o tambor estava completo.

Voltou, então, para o salão, onde encontrou sua bela Rosa esperando-o, com um olhar preocupado.

— Onde você tava, amor? Eu fiquei...

— Relaxa, minha fada. Eu estava conversando com uns amigos ali perto do banheiro — mentiu ele. — E ai, vamos voltar a dançar novamente?

— Ah, não, amor! Vamos embora! — Choramingou ela, sentindo cada vez mais um aperto no coração.

— Nada disso. Eu ainda não dancei com a Celeste.

E lançou um breve olhar para o salão até encontrar a figura majestosa de dona Celeste. Foi até ela e chamou-a pra dançar:

— Eu não poderia ir embora sem antes dançar minha última canção com você...

Celeste era uma mulher de aproximadamente trinta anos, com cabelos longos, amarrados cuidadosamente através de um penteado super criativo. Era magra, elegante e usava óculos.

— Ultima canção! — Estranhou ela. — Mas por quê?

— Porque não vou poder vim mais aqui. A Rosa não gosta desse lugar. Ela só vem mesmo porque eu gosto... E eu não venho sem ela de jeito nenhum.

Nisso, um dos admiradores do casal de dançarinos, gritou bem alto para que todos pudessem ouvir:

— Gente, vamos abrir ai porque o Dr. João e dona Celeste estão na pista!

Fez-se uma roda em torno deles para observar o casal dançar. No entanto, nem João, nem Rosa, que aplaudia entusiasmadamente o seu amor dançar, nem ninguém, viram quando um homem tirou do bolso da jaqueta uma arma e disparou duas vezes contra o casal.

Um dos tiros pegou de raspão no braço de dona Celeste e o outro acertou de cheio o peito do ex-delegado, que não teve tempo nem de pegar a sua arma.

— Moleque tem coragem de matar homem, sim — foi o que ouviram do assassino.

E assim, Rosinha apenas chorou a morte do seu marido conformadamente. Nada ali era surpresa pra ela. Pois já tinha vivido tudo aquilo no maldito sonho. Exatamente igual. Sabia que aquilo tinha de acontecer mesmo e ela não poderia fazer nada, apenas conformar-se. Foi o que fez. Afinal, destino é destino e ninguém muda, né?

N.A. - Este conto foi baseado numa história verídica. Destas que a gente ouve, por acaso, e não esquece mais nunca. Infelizmente não posso dizer aqui o nome da pessoa que me contou. Mas ela sabe de quem estou falando.

* Esse conto também fez parte da coletânea: Contos, Crônica e Artigos, lançada em Salvador-Ba e publicada no Blog "Cantinho do Leitor" (http://condeuba2.arteblog.com.br/), em 31 de maio de 2010.

Leandro Flores Bahia
Enviado por Leandro Flores Bahia em 27/09/2010
Código do texto: T2523964
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