Em briga de marido e mulher, salve-se quem puder.

A cidade de Encruzilhada das almas descalças era um lugar pacato, quase nada de novo acontecia, era esquecida de todos e nem no mapa existia. Terra de bom sossego, isso sim, casas de porta e janela com alpendre na frente, cercado ao lado onde as pessoas criavam seus animais domésticos. No fundo das casas os pilões que serviam para pilar as carnes da paçoça do domingo, um fogão de lenha e um banheiro separado da casa. As crianças alegremente enchiam os terreiros com mil e uma brincadeiras inventadas, outras armavam suas gaiolas e de butuca ficavam observando quando os passarinhos eram presos, a alegria era geral, os mais afoitos gostavam mesmo era de ir aos açudes tomar banho e pescar peixes de água doce. Outros iam a feira livre da cidade para ver os bonecos do negro Baltazar contar suas proezas e desavenças. Era o dia-a-dia da pacata cidade.

Os homems, caboclos valentes e dispostos, no cantar do galo logo saiam de casa para aboiar o gado, tanger para os pastos, tirar-lhes o leite, quanto voltavam, cansados, com feichos de lenha para garantir o fogo do outro dia. Vinham cansados, alguns com o corpo todo marcado pelos espinhos da vegetação por onde passavam. O corpo, por mais que protegido pelos gibões, quimados pelo calor do sol. A alegria era estampada quando em casa recebiam os carinhos das dedicadas esposas. Elas em casa cuidavam de tudo, dos filhos, da casa, do almoço, da água que já devia está posta quando o marido chegasse. Moiam o milho, faziam o cuscuz, a galinha morta e preparada, os filhos banhados e toda a casa limpa e perfumada. A rede alva do marrido era armada no alpendre, depois de chegado, banhado e comido, ia deitar-se para ver o tempo passar, e assim se ia na pacata cidade de Encruzilhada das almas descalças.

Mas, como nem tudo é perfeito, a calma da cidade era perfeita demais, por isso não poder existir para sempre. Desde a chegada de um tal vendedor de bugigangas que o juízo das mulheres almenses não era mais o mesmo, o dinheiro das ofertas da missa havia diminuído consideravelmente porque tudo era desculpa para comprar algo no carinho ambulante do tal homem falante. Para algumas era um modelo de homem que não tinham em casa; para outras era um grande galante parecido com locutores de rádio. Julgavam-no assim pelas vozes ouvidas na única rádio comunitária desse lugarejo esquecido pelo resto do mundo...

Vendedor (cantado):

E porque a vida me fez assim

Eu agora vou contar

Pra você que tá chegando

É favor se acomodar

Pra você que pensa em vir

Vá tratando de sentir

A alegria que tenho em compartilhar

Aos senhores com muito prazer

Eu agora vou dizer

Desse meu jeitim

A você meu companheiro

Que não pode se assentar

A senhora gorda e roliça

Bocejando de preguiça

Faz favor de escutar

Porque a vida me fez assim

Eu agora vou contar

E quem não quiser me escutar

Feche bem os ouvidos

Cabra besta e maluvido

Bote o rabo entre as pernas

Vá de reto, vá embora

Que já é chegada a hora

Da história começar

Vou contar, vou contar...

Eu agora quero ver

O meu canto se espalhar

(Entrada de um grupo de artistas populares):

Nasce o sol, é dia. Surge a lua, é noite. No picadeiro da rua, brilham, como estrelas, os artistas da vida... Os que cospem fogo, que andam em pernas de pau, que fazem caretas engraçadas, trazem o bem a tona e detonam o mal. Donos do riso e da alegria... Senhoras e senhores, assentados em seus lugares, atenção, muita atenção, o espetáculo vai começar. (música)

Tá na boca do povo, tá

Tá no coração da gente, tá

Tá no meio do povo, então

É trupe de arte popular

Abra bem seu coração – para escutar

Receba com muita emoção – vou contar

Se você quiser saber – vem cá

Eu agora vou contar

Eu agora vou contar

Eu agora vou contar

Eu conto uma, conto mais de uma vez

Conto quatro, cinco, seis

Se você me acompanhar

Do outro lado, um espetáculo a parte. Comadre Titica, quem poderia ser? Chama toda a atenção brigando com uma outra comadre por causa de uma tal certa, vamos ver...

Titica: (gritando) A cerca é minha e também é sua arengueira, pau de lata. Tenho direito de estender minhas roupas do mesmo tanto que você, dona encrenca. Se atreva, se atreva a encostar suas mãos porcas em minhas roupas alvas que botei no anil para quarar que eu te ensino com quantos paus se faz uma canoa... Todo dia é a mesma coisa, acordar cego, lavar roupa, botar milho pras galinhas, apanhar os ovos, fazer o fogo, aparar água... Acorda preguiça. Os passarinhos que não devem a ninguém, a tempo que cantam e você que deve o mundo inteiro ainda dorme... Chega, chega, chega que tenho que encher os potes porque água agora, só daqui a três dias. Ah, meu Deus, onde foi, onde foi que eu fui esconder minha botija, onde? Essa não foi a vida que eu te pedi, não foi... Acho que quando tava pra nascer, minha mãe mijou na cruz ou praguejou o padroeiro, só pode ser. Só pode ser... Por mais que eu faça, parece que não faço é nada. O pior é o agradecimento, o que me dão é dedo nas ventas.

Mané Trote: (entrando como se tivesse fazendo jogo do bicho) Três vezes três, nove, nove, nove fora nada, nada. Três é burro, o que dá coice, que atira pra atrás e cobra a que rasteja, escorrega e o azar, pra quem sobra? Pra quem?... Figa, figa na encruzilhada de seu Zé pra mandar pra lua o rastro de corno que pisei... Três vezes figa, figa. Tesconjuro corno manso, tearrenego corno brabo... Raios te partam, mal auguro, diabo te leve, vade reto, satanás, vade reto... Diacho de mulher, espirrela caída, pimenta malagueta, infeliz... Infeliz das costas oca, pau de sebo quarado, desviu de encruzilhada por oeste, despacho de macumba, despacho de macumba que a sogra do cão enjeitou...

Titica: Eita, eita, eita que chegou a hora da onça beber água... Arre égua Santa Bárbara, puxa o estrondo São Jerônimo que o caldo vai engrossar, vai virar pirão... Meu amor, como você é romântico, tudo isso só pra mim, é? Desse jeito cê me deixa encabulada, fico toda molhadinha só de pensar... Pois então, acordou fazendo versinho foi, bichinho?

Mané trote: É por isso que sempre digo: mulher feia e jumento, só quem vai atrás é o dono. É o dono e mais ninguém, ninguém... Não me venha com suas piadas que a maré, hoje, não estar pra peixe, pra piaba nem cabra cega...

Titica: E eu com isso?

Mané trote: Risco com feitiço...

Titica: E a resposta?

Mané trote: Caixão de bosta...

Titica: Por aí é que a onça bebe água... Por um acaso tenho cara de pescador, tenho? O que tenho na cara são dois olhos irmãos, um no gato e outro no...

Mané Trote: Cale essa boca e trate logo de dizer onde diacho foi que você colocou meu cachimbo que a tempo que procuro e não acho. Já revirei tudinho lá pro dentro e nada.

Titica: E agora ainda mais essa, só pode ter pisado em rastro de corno mesmo, daqueles que o chifre é tão grande, mais tão grande que anda com o pescoço atolado porque não agüenta o peso, homem. Depois de bebum, boca podre, fedorento, mais parecido com um pai de chiqueiro, poeta, ficou cego, foi bichinho?

Mané trote: Eu não sei onde estou com a cabeça que não aplico uma lição daquelas que você passa mais de semana bem quietinha, com a venta parecida com a venta de bezerro novo, achatada e mole, a carne toda moída, visse...

Titica: Sei, diga mais, to gostando de ver...

Mané trote: Dou-lhe um murro no olho de deixar roxo, um murro na boca que os dentes vão parar na boca banguela de baixo...

Titica: Mas você veja bem, um cabra da peste desses... Venha mané (pega a faca e faz um círculo no chão) se atreva a pisar nessa roda aqui em volta deu, pra ver se eu não te ensino como é que se escama um bagre magro e fedorento, se atreva Mané.

Mané trote: Tá me desafiando?

Titica: Seja homem, seja... Risque aqui nesse balão pra vê se não lhe arranco os possuídos e dou pro gato comer, vem Mané...

Mané trote: Besteira, mulher, vai querer arrancar meu bem mais precioso? Tá querendo desonrar seu maridinho é? E veja bem seu estado, não sou covarde a ponto de bater em mulher grávida... Chegue cá, ande, tá me dando um fogo, vamos brincar um bocadinho de gangorra, lá dentro. Vamos...

Titica: Pode baixar esse fogo de palha ai loguinho, loguinho... Me deixe quieta no meu cantinho, aqui, pensando com meus botões, mão de pilão, me deixa, não mexa comigo... Hoje eu to arretada,visse, homem imprestável, molenga... Acordei daquele jeito, de quina pra lua...

Mané trote: É porque dormiu na rede, longe deu, se tivesse dormindo juntinho de mim, feito pá de meia, esquentando meus pés, teria acordado de outra forma, disposta, saciada, feliz...

Titica: Até parece, quem te ver falar assim é até capaz de pensar que é verdade. Eu já perdi até a conta de quantas luas você não dar mais no coro, na hora h, tá lá o ponteiro marcando a hora errada.

Mané trote: Aí você já tá indo longe demais. Tá pra nascer um homem que der mais no coro do que seu Mané aqui. Só de pensar, só de pensar o ponteiro já...

Titica: Ronca, só de pensar que vai trabalhar. Pra encurtar a conversa, escute bem, escute... Hoje tem café, mas não tem açúcar; tem arroz, mas não tem sal; tem tempero, mas não tem carne; tem...

Mané trote: Desse jeito não tem ponteiro que se agüente em pé... Isso eu sei, eu sei, não precisa repetir... Eu quero é meu cachimbo, tô a fim de dar umas baforadas.

Titica: Sabe, mas não faz nada. Parece um bicho preguiça, um morto nas saias, não sai do canto, não faz nadica de nada pra melhorar essa situação... Trate logo de arranjar um trabalho, traste. Até o aluguel tá vencido três meses e eu não tenho mais cara de inventar mentira não.

Mané trote: Tá pensando quê? Que é só nós que estamos nessa situação, é? Até o coroné, o homem mais rico desse arraia, que tem pra mais de mil cabeças de gado diz que a vida tá braba, que a crise tá solta...E olhe que ele é padrinho nosso de casamento, quando me ver vira as costas. A coisa tá difícil, tá difícil...

Titica: Pois então vá arrancar touco, vá capinar um mato, vá juntar papelão, pastorar carro, vender picolé, se escrever nesses projetos do governo, procure se alistar na emergência. A idéia de chamar o coroné pra padrinho foi sua, porque era patrão do finado seu pai, ia te dar a mão, pois então? Até aqui, nada. Nunca veio nem em nossa casa...

Mané Trote: Eu tento. Todos os dias eu tento, mas tá difícil.Deus é testemunha e meu advogado, sabe que eu não tou mentindo. Já bati na porta de padre, pastor, de político, programa de governo, prefeito, vereador, deputado e a resposta é sempre a mesma, sempre a mesma...Tapinha nas costas, me chamando de irmão e, e, e...

Nesse mundo de meu Deus

De homens, cobras e lagartos...

Como fazer justa partilha

Se a mão mais amiga

É a que mais te humilha

E te leva para baixo

É a mão do camarada

Que freqüenta sua casa

Come da sua comida

Usufrui sua dormida

E te pega em traição

Neste mundo de meu Deus

Só vendo para crer

Como é feita a partilha

Muitos com tão pouco

Debaixo dos viadutos

Nas grandes favelas do mundo

Vivendo como loucos

E poucos com tão muito

Arrotando arrogância

Em grandes latifúndios

Em terras não trabalhadas

Comendo do bom e do melhor

Neste mundo de meu Deus

Onde o dinheiro é o rei

Titica: Você não vale nada, nadica de nada, esse é o fim da história. Não vale o que o gato enterra. A gente só vale aquilo que tem, se você não tem nada, não vale nada, nem um tiquinho assim. Somente a morte, só com a morte é que todos ficam iguais, debaixo do chão, comido pelos vermos, todo mundo virando pó, todos iguais com o mesmo fim. Acabe com essa história de fazer versos, porque verso não coloca feijão na panela.

Mané Trote: É isso mesmo, genial, genial... Você acabou de me dar uma grande idéia, uma excelente idéia... A morte, a eterna morte, a mais justa das entidades como nossa grande comadre e boa vizinha, a morte, o fim de todos, temida por todos.

Vou embolar meu coco

vou mandar meu recado

vou fazer verso quebrado

vou esperar aqui deitado

vou deixar tempo passar

apontar dedo pra estrela

pra nascer uma berruga

jogar cartas de baralho

tirar sorte nos dados

vou ser bandido no sertão

junto com a caipora

vou rezar pra nossa senhora

virgem santa e padroeira

a Maria Auxiliadora e Conselheira

aquela toda cheira de graça

que não me deixa na desgraça

atrás de explicação

a comadre dona morte

que me traga boa sorte

e me tire dessa aflição...

Titica: Chega mané, chega que tá me dando uma coisa...

Mané trote: Se for uma coisa boa, receba.

Titica: É uma coisa ruim, homem.

Mané trote: Então não perca tempo, devolva.

Titica: É a dor do parto, homem, o menino vai nascer...

No final de tudo, todos aplaudem e se emocionam, afinal de conta, é o espetáculo da vida que acaba de acontecer.