A VERDADE E A FALSIDADE¹

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Recontando Contos Populares

 

Certa vez, nos tempos em que as divindades visitavam o mundo mortal, a Verdade, que queria conhecer todos os povos da terra, partiu com a intenção de andar pelo nosso sertão. Aqui chegando tomou a forma de uma sertaneja e saiu pela estrada a fora. Não demorou muito para que a Falsidade, sua rival, tomasse conhecimento do propósito da Verdade. Imediatamente tomou, também, a forma de uma sertaneja e se pôs na mesma estrada. Logo, Falsidade encontrou-se com  Verdade. Esta, vendo a sertaneja e, sem atinar que era sua rival, cumprimentou-a:

— Bons dias, conterrânea, para onde vai?

Falsidade respondeu:

— Resolvi andar por este sertão para travar conhecimento com seus habitantes.

— Ora pois, eu também – disse Verdade. Vamos juntas.

Deram-se as mãos em sinal de amizade e prometeram não abandonar uma à outra, no bem e no mal. O que uma possuísse, dividiria com a outra. A Verdade acreditou na Falsidade e seguiram o caminho.

Ao assumir a forma humana, para se disfarçar, as divindades passam a ter os defeitos humanos: se machucam, sentem dor, entre outras coisas. Por isso, ao passarem por um botequim, entraram para descansar. Verdade aproveitou a ocasião para um pequeno lanche. Pegou, das provisões que trouxera, vários petiscos e ofereceu alguns a Falsidade, que aceitou de imediato. Comeram até se fartar. Assim que terminaram, Falsidade lhe diz:

— Quando acabarem os seus, comeremos os que eu trouxe.

Mas quando os suprimentos da Verdade acabaram; Falsidade pegou os dela e não ofereceu, nem um bocado, para Verdade. A coitada estava muito faminta, tão faminta e fraca que seus olhos embaçaram e tudo o que via era apenas sombras. Pediu gentilmente a amiga: Dê-me um pouquinho de comida! Eu reparti tudo o que tinha com você.

— Não dou não! Respondeu Falsidade.

Verdade implorou:

— Não me deixe sucumbir aqui, dê-me apenas um pedaço de pão, para que eu possa chegar a alguma vila e mendigar.

Falsidade não se comoveu e a deixou ali, na estrada, sozinha. A Verdade sentou-se no barranco e ficou esperando alguém passar, mas não apareceu sequer uma alma viva.

Era já por umas sete da noite e Verdade ali sozinha e quase morta de fraqueza, deixou-se mergulhar em um sono profundo. A meia-noite acordou com murmúrios acima de sua cabeça. Percebeu que vinham de uma árvore próxima de onde estava deitada. Prestou mais atenção e certificou-se que as vozes não pertenciam a seres humanos, mas sim a demônios que se reuniam nas noites de sexta-feira naquela figueira, para relatarem suas maldades.  O mais jovem deles declarava:

— Eu inventei uma grande maldade, algo que no espaço de uma semana destruirá o vilarejo e todos os que nele habitam, com alma ou sem alma.

— E como será isso? – perguntaram todos ao mesmo tempo.

— Rolei uma grande pedra até a nascente de água do vilarejo e a enterrei tão profundamente que nenhum mortal poderá vê-la. Essa pedra impedirá que a água brote dessa nascente, e todos os habitantes do vilarejo morreram de sede.

Depois disso, os diabos nada mais disseram. Partiram para algum lugar que só Deus sabe onde.

Verdade, que havia ouvido toda a conversa, resolveu verificar se a conversa daquele jovem diabo tinha mesmo veracidade. Embora estivesse tão faminta e fraca que as pernas mal e mal a suportavam, reuniu suas últimas forças e saiu pela estrada capengando, trocando pernas. A muito custo, chegou ao vilarejo; de imediato, percebeu que todos os moradores estavam de luto, muitos choravam, pois a tristeza era grande demais. Não perdeu tempo, foi direto procurar o prefeito, que se encontrava em sua sala, na prefeitura, profundamente abatido. Verdade lhe contou o que tinha ouvido durante a noite e que bastava mandar remover a pedra, que, debaixo da terra obstruía a nascente, para a água voltar a correr abundantemente.

O prefeito reuniu o povo do vilarejo e todos se dirigiram até a nascente. Dito e feito, lá estava a pedra enterrada na boca da nascente. Assim que a tiraram, a água jorrou borbulhante, enchendo o riacho. Finalmente havia água suficiente para aplacar a sede de todos para sempre. Logo, a alegria voltou a reinar no vilarejo.

Verdade foi recompensada com tudo do bom e melhor. O prefeito convidou-a a viver no vilarejo, mas ela disse-lhe que isso não era possível, porém passaria um bom tempo entre eles.

O tempo foi passando e Falsidade ainda corria o mundo. Um dia suas provisões também acabaram e enquanto vagava de um lugar a outro, coincidência ou não, acabou sentando no mesmo barranco onde largara Verdade, tempos atrás, e adormeceu.

Anoiteceu e os diabos tornaram a reunir-se no mesmo local para prestarem conta do que cada um fizera naquela semana. Porém, antes de começarem seus relatos. o mais velho dos demônios diz aos demais:

— Esperem um pouco, vamos dar uma olhada para ver se não há ninguém nos ouvindo, porque da última vez alguém andou nos espiando; senão como puderam descobrir a história da pedra?

Fizeram como o mais velho pedira, e não é que acabaram descobrindo Falsidade cochilando perto da figueira. Foi uma pancadaria geral. Caíram em cima dela a tapas e murros. Deixaram-na em pedaços e, como isso não bastasse, acenderam uma fogueira e a queimaram, jogando suas cinzas no ar.

O vento, que assobiava danado de brabo, carregou e espalhou suas cinzas pelo mundo todo, e desde então, onde o homem vive a Falsidade também existe. ®Sérgio.

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¹ - Adaptei esta lenda para o universo sertanejo, da lenda Húngara extraída de O Mundo de Contos e Lendas da Hungria. Tradução e seleção de Ildikó Sütö. São Paulo: Landy, 2002. Os contos apresentados nesse livro foram selecionados da obra World of Húngaro Contos e Lendas (5 volumes) de Elek Benedek (1859 – 1929), um dos escritores húngaros pioneiros da antologia de contos e lendas populares da Hungria.

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