Carta Para Meu Filho

Carta Para Meu Filho

Penso em você quase assim – com contemplação. E nesse seu rosto que muda quase o tempo todo. Mais as idéias que você expõe.

As coisas da emoção na minha mente funcionam (quando funcionam), como um álbum de retratos meio mágico, cujas imagens ora vem, ora vão, ora mudam lugar, ora só me dão a impressão de estarem lá. Por exemplo: lembra, quando a gente fez a mudança da casinha para a casa da Chris? Você no banco de trás do Ford Ka, segurando os móveis? Na nossa estrada - porque existe uma estrada que é minha e sua - houveram retas e curvas, e muito mais flores que espinhos, sem mencionar as ocasiões em que fui seu herói e você o meu, embora agora, pensando melhor, se algum dia na minha existência brilhei, foi quando seus olhos me fizeram pai. Mas aquele dia da mudança admirei sua bravura – molequinho, segurando a maior bucha naquela João Dias, o porta-malas aberto, a gente à 30 por hora... Meu bom amigo.

Lembra da gente na vó Milu? Ela batendo na porta do quarto, a gente ali acampado, ligando do celu para o telefone dela, para ver se ela dava uma trégua. Coitada. De uma coisa tenho certeza. A gente gostava de ficar junto.

E quando ajudamos sua irmã a pedalar sem rodinha? Foi no mesmo fim de semana que fizemos um trio e demos de 5 a 2 naqueles malas lá praça. O céu estava cinzento. Mas o bacana foi o nosso trio. Sou um romântico, filho, nasci assim.

Um belo dia, meu avô Maneco sentou ali no terraço, desafrouxou a gravata, me olhou bem no fundo e disse: Bernard, a vida é um sonho. Era o meu vigésimo terceiro aniversário. Hora do almoço, dia de semana, eu trabalhava com ele na época. Ficamos um tempão em silêncio. Aquela frase embutia o seguinte: o tempo passa, quando olhamos para trás o que resta são imagens, como num sonho.

E a linha do tempo proposta nesse texto busca ir de encontro com a sua consciência. Noutras palavras, aquilo que vivemos juntos e que já estaria (ou não) fixado na sua memória. Porque dizem que esse processo no ser humano começa a partir do segundo setênio, ou seja, a partir dos 8, 9 anos de idade. Assim, que finalidade teria inserir aqui coisas do tipo “oh, filhinho, quando você nasceu, etc, etc, etc.?” No momento a intenção é outra. Adoraria escrever uma carta desse gênero, palavra, contando a partir da sua concepção e daí descrever todo o conjunto de percepções que se agregou no meu ser desde o dia em que soube da sua chegada ao planeta Terra. Fica, porém, para outra ocasião. A idéia agora é simples. Penso em você. Ponto.

E penso em você de vários modos – também com saudade.

E a nossa patrulha de salvamento de abelhas, no Guarujá? Aliás, no Guarujá, lembra, era o último dia de 1999, nos enfiamos na mais pavorosa de todas as chuvas, não dava para ver um milímetro pelo pára brisa da Parati, de noite...Foi uma aventura.

Sempre gostei de te trazer pra cá e, em dado momento, atravessar uma linha imaginária que nos levava para um território cheio de árvores, de filmes, de passeios à noite com o Artur, de conversas intermináveis.

Ano passado vimos a procissão aqui na chácara, a lua nascendo no fim do cenário, era Sexta-Feira Santa.

Já me flagrei em final de semana deitado no sofá assistindo filmes que vi com você, então parece que naquele instante estou revivendo porque, afinal de contas, eu penso em você também quase desse modo –com nostalgia.

Tenho certeza de que surgiram momentos desagradáveis, e é com absoluta clareza que delineio a extensão e a densidade dos meus erros. Mas sei que no frigir dos ovos fomos felizes e a soma dessa goleada não tem mácula relevante, decorrente das minhas bolas na trave. Tenho saudades da sua presença. Acho que a nossa estrada é uma boa estória. Acho que no plano divino das nossas vidas, fizemos a escolha: eu te veria criança e você me veria adulto. Só que o plano não pára. E vamos mudando de estágios.

E ficam as lembranças, para mim tão doces que até assustam. Nossa ida para Alphaville, os x-saladas no Frevinho, as pizzas (só para nós), do interminável Senhor dos Anéis no Market Place, do Halloween no condominio..., ou, essa você tem que lembrar, a gente assistindo Jumanji na vó Judith, era sábado á noite, e chovia. Ou então, você catando siris, meio cabisbaixo, num dia lindo na praia de Pernambuco, com a Chris, a Denise, o Matheos e a Carol...você estava triste esse dia. Não consegui saber por que. Tanta coisa que, no final de contas, não falamos. Acredito na importância das palavras que vem do coração e na comunicação que não pretende vender, assim como acredito que tudo tem hora certa.

Inclusive a troca – de sensações, pontos de vista, juízos... - entre um pai e um filho.

Eu hoje me olho no espelho, faço a barba e digo: Eu Sou o Que Eu Sou. Daí pego minhas havaianas, a bermuda que já anda sozinha e a Hering que está aprendendo e vamos todos para a ONG. Dia a dia me ajudo e ajudo pessoas. Dia a dia agradeço a Deus por haver recobrado, ou quem sabe, adquirido, uma consciência. Ás vezes porém, e ainda que em meio a um absurdo festival de possibilidades que me vem à mente, solto umas lágrimas. Mas então me integro com minha força e sigo em frente. Outras coisas, grandes como sonhos e intensas como sentimentos, transitam pela minha mente e, não raro, nos meus afazeres cotidianos.

São, porém, frutos de um homem de 47 anos, e não podem encontrar eco num rapaz, por assim dizer, de 17 anos. Volta e meia, em esporádicas conversas pelo telefone, eu sinalizo. E você retorna. E se não sabia, saiba agora – já me ajudou muito.

Longe de ser um gênio bem sei que meu lay-out não se encaixa no seu ideal de um pai herói. Mas também já sei que ego e sistema de crenças oscilam como as estações do ano e que a vida é de fato feita de instantes. E que os mesmos ganham um lugar especial na memória quando tem sentimento. Daí eu penso em você.

E tenho certeza que por um breve período as aparências cederão ao prazer inenarrável de, vez por outra, estarmos juntos. Porque algo me diz que, nesta nossa especial arquitetura de Pai/Filho, nos amamos, e que vale à pena cultivarmos nossa estrada.

Beijo

Feliz Páscoa

Papai

07/04/2007

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 22/02/2008
Reeditado em 22/02/2015
Código do texto: T870640
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