MEU QUERIDO AMIGO, PAULO

Meu querido amigo, Paulo

Recebo com inusitada alegria tua carta, após tantos anos de uma antiga, profunda, cúmplice e verdadeira amizade. Quem diria? Quem diria que naquele dia cuja data o calendário levou, surgiria daquele rápido encontro formal, cheio de pantomimas e mises em scène, lá no alto onde trabalhavas naquele prédio elevado onde ali, à época,

era o Bandepe, iríamos nos deparar com o início de uma amizade que hoje nos é secular. Você vindo dos teus recentes vinte anos, assim como eu, parecíamos dois estrangeiros vindos de hemisférios oposto de um universo chamado Recife. Tu do Norte, e eu do Sul. Se alguém ainda acredita que a terra é plana, esse alguém não nos conhece. Tornamo-nos o ponto de confluência onde uma circunferência se fecha, porém outra se inicia. Pois, no topo daquele mundo, sob o olhar das nuvens, dos pássaros e dos demais habitantes do céu, afora os demais que comigo estavam, seis pessoas se encontraram: como eu me via, como tu me vias, como tu te vias, como eu te via, e como cada de nós realmente somos e ainda não sabíamos. Agora entendo o que disse Aristóteles: “a amizade é uma alma com dois corpos”.

Interessante, e porque também não dizer risível, relembrar que nossos primeiros encontros fortuitos, como naquela fila do elevador, pareceram pra ti uma espécie de ritual de acasalamento. Talvez pela bolsa feminina verde que usava, ou pelos cabelos assanhados pelo vento da rebeldia, ou ainda talvez pela minha impertinência extrovertida, ou tudo isso junto, quem sabe, passasse a imagem de um assédio homossexual implícito. Percebo, não nego, ter sido ali um jogo de sedução, porém o que se mostrava de mim não era o de um amor que não ousava dizer seu nome (Oscar Wilde), e sim do meu anima que se revelava. Afinal tu, com a formalidade do teu terno, cargo e trejeitos, com seus olhos ocultos por detrás das fortes lentes de grau, eras o animus que inconscientemente procurava fora de mim. E assim, cumpriu-se como uma profecia a assertiva de Aristóteles, o esbarrar de uma alma em dois corpos.

Tua namorada à época, e esposa da tua vida inteira, sentiu-se ameaçada por minha intempestiva chegada à tua vida. Em um primeiro momento, temeu que a festa do casamento programado se tornar-se páginas de uma revista literária. Todavia, passada as primeiras impressões, não tão falsas assim, tenhamos nos tornados (Tu, Celi, Rose e eu) um bom quarteto de dois casais, com histórias e aventuras para hoje contarmos aos nossos netos. E lá estávamos nós (eu e Rose) presentes ao teu casamento, e depois padrinhos da tua primeira filha. E mais adiante, vocês padrinhos de meu casamento. A vida nos tornou amigos e compadres.

E tantos anos se passaram. Tantas coisas aconteceram. Tantas alegrias e frustrações nos formaram. O tempo que a tudo devora, quanto a nossa amizade, ao contrário, as décadas nos somaram. E de vinte em vinte anos chegamos aqui, ainda prontos e jovens para os próximos vinte anos. Muitos outros amigos vierem e se foram, alguns ocasionais, outros apenas passageiros. E ficamos. Nem mesmo a distância geográfica foi ou é capaz de nos separar. Corpos se distanciam. Afetos não. Eu descrente do místico e do destino, reconheço ter sido pego por eles de repente, com espanto e fascínio. Schopenhauer estava certo quando disse que “a única amizade que vale é a que nasceu sem razão”.

Paulo, meu querido Paulo, Não tenho saudades, pois saudade é o sentimento que vem depois que acaba a esperança. Tenho esperança de envelhecer 20 anos ou mais tendo contigo tua amizade a me acompanhar. O meu coração está sempre aberto a te acolher, e vice-versa, eu sei. A nossa amizade recíproca é fraterna. E é esta Philia que nos conduz à Eudaimonia.

Um beijo animado

Teu amigo de sempre, Joca

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 28/01/2024
Reeditado em 28/01/2024
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