carta de saudade e um relógio

caro t.,

olha, eu sei que não devia, tá bem? mas eu não podia deixar isso passar. sei que prometemos que ficaríamos longe um do outro, que era preciso, que era o certo para ambos. concordamos com isso. eu sei. não entenda como uma quebra da promessa. sabe que eu sempre cumpro minhas promessas, por mais doloridas que sejam. eu não estou tentando voltar para a sua vida. eu sei que não tenho esse direito e que não há espaço para mim na vida que construiu. mas, eu acho que essa é a forma que achei de encerrar a nossa história da forma como ela merece. eu achei, por acaso, no brechó que fui com a minha amiga, um relógio igual ao que seu pai havia te dado e você perdeu no dia que me conheceu. eu juro que fiquei impressionada com a semelhança: um relógio simples, de couro, marrom, com os ponteiros dourados, da mesma marca e fabricação do que tinha. e esse pequeno objeto me transportou para lembranças que eu não ousava visitar há muito tempo. aí me recordei de você alegre, no meio dos nossos amigos, fazendo o seu monólogo. pois você transformou esse momento triste em uma história engraçada e fofa sobre como o destino nos uniu e que a perda do relógio só podia significar que eu era a sua pessoa. seria o seu grande amor – e eu fui, por um tempo. contudo, eu sabia como você sentia falta desse objeto, por te fazer lembrar do seu pai, que você perdeu tão cedo. eu sei do seu desejo de entregar esse relógio para o seu filho um dia e como você se frustrou por perdê-lo. por isso, quando eu o achei, idêntico ao que tinha, que eu vi nas fotos que me mostrou, eu lembrei de você. da pessoa indescritível que é. que ama as pessoas e guarda as lembranças delas com devoção. que perdeu um objeto importante, mas que dizia que estava tudo bem porque tinha achado uma nova coisa favorita na vida: a mim. e sei que era sincero. porque é quem você é. então, eu não podia deixar te demonstrar, uma última vez, o quanto você é a minha coisa favorita do mundo. eu comprei o relógio. e, apesar da minha memória de dory (do procurando o nemo, lembra? você me chamava de dory por sempre perder as chaves ou ficar parada no meio da sala me perguntando o que ia fazer), eu lembrei de todas as características singulares da peça. mandei gravar as iniciais do seu pai, com a mesma caligrafia – eu mesma fiz o esboço. mandei limpá-lo e consertar o fecho da pulseira. tentei deixá-lo o mais idêntico possível ao que tinha, mas confesso que fiquei com pena de recriar o trincando que havia no canto esquerdo. mas você pode fazê-lo, se assim desejar. todavia, eu tenho outra confissão a fazer, que você vai descobrir ao abrir a caixa: eu fiz algo por mim também, que pode soar egoísta, mas eu achei que devia isso a mim, a nós dois. eu fiz o relógio ficar parado na hora exata em que nos conhecemos, no dia 15 de maio, às 15:05 (o ponteiro menor no três e o maior no um). sempre achamos uma coincidência incrível que justamente nesse horário, nesse dia, você e eu nos esbarramos naquele metrô lotado e mudamos a nossa história para sempre. sei lá, acho que apenas queria, mais uma vez, compartilhar esse momento com você. espero que esteja sorrindo como eu estou ao escrever isso. sabe, aproveitando que estou confessando coisas, eu sinto saudade de você. quer saber, saudade não é nem perto o que sinto. não é a palavra apropriada para elucidar o que venho sentindo desde que nos despedimos. vazio também não combina com o meu momento. se eu pudesse descrever, seria como um dia de neblina densa, em uma madrugada de outono. em que há pouca luz, mas a paisagem parece harmônica. algo bonito e triste, ao mesmo tempo. desculpa, imagino que está gargalhando, achando graça em como eu sempre fico poética ao tentar descrever meus sentimentos. fazer o quê, se eu tenho alma de poeta. eu acho que, talvez, o que meu coração sinta há meses – dezoito meses para ser exata - seja uma oscilação flutuante. meu coração sabe que não está parado no tempo, mas ao mesmo tempo, ele se apega a um fantasma. olha, melhor parar por aqui. eu prometi não ficar tão sentimental aqui, mas falhei miseravelmente. eu não sei se devia fazer isso ou não, mas já está feito. aceite meu presente como símbolo da nossa história, de tudo o que vivemos. desse amor que foi lindo e grande pelo tempo que durou. nem todo para sempre dura a vida toda. quando usá-lo, por favor, me torne motivo de riso e lágrimas, como fez com a memória do seu pai. espero que posso entregá-lo ao seu filho um dia. você merece o mundo e fico feliz em ter sido o pequeno solzinho que o aqueceu por um breve instante.

com amor, l.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 17/08/2022
Reeditado em 18/08/2022
Código do texto: T7584637
Classificação de conteúdo: seguro