Escrevo-te para não morrer

Escrevo-te para não morrer. Cheguei a um ponto de confusão. Já não sei mais o que é vida e o que é essa necessidade doentia de devoção. Quem dera fosse cegueira. Não é. Enxergo-te perfeitamente: qualidades, defeitos; e gosto mais destes do que daqueles. Mas deve haver alguma explicação, para tudo há. O extremo isolamento, talvez, encontrando-se repentinamente com uma qualquer demonstração de afeto. Hipótese sempre válida, sempre racional. Essa coisa de se relacionar com outrem, não há como negar ser um traço característico do ser humano ordinário, normal. E sim, sou ordinário e normal. Meu isolamento é obra do Destino, não cabe a mim; ou, é obra de minha teimosia, mas esta, igualmente, do Destino. Portanto, meu isolamento não me faz extraordinário, não me é próprio - me é atribuído. Mas, por algum motivo, não estou convencido, pois não explica a devoção. Há algo de mais nisto de tê-la à porta do pensamento a todo momento, seja consciente ou inconscientemente. Confesso que, sim, talvez esteja cometendo o desencanto de ser analítico, já que somente consigo detectar a distinção desta devoção, a de agora, se em relação com outras, as quais jamais chamei deste modo justamente porque não chegaram ao merecimento desta nomenclatura; mas, sim, há semelhanças, e creio que, provavelmente, devido a esta coisa supracitada do isolamento. Ora, e aqui retomo o pensamento, sabes bem do meu vício científico, de meu sentimento de irresponsabilidade pelo que sou, que concatena com absolutamente todos os meus usos da palavra Destino, com dê maiúsculo. É possível que isto esteja em relação com minha postura, de agora, analítica. Peço desculpas. Preciso pensá-la, pensar em minha devoção a você, em relação às outras quase devoções que tive por outras quase mulheres - se em relação a ti. Peço que conceba à parte esse meu pecado de desperdiçá-la em relações, mas é isto que devo almejar fazer caso deseje encontrar alguma resposta para minha devoção - ora, veja bem, acabo de perceber que todo o propósito, da carta, carrega em si também o vício científico-racional do qual falava. No outro momento, em todos eles, tudo que faço é exatamente o oposto disto de ser racional para com o que sinto por você. Tudo que faço, e jamais cheguei a lhe falar isto, é conversar com você a todo instante, e não me refiro às nossas conversas efetivas. Ora, bem sabes tu também da minha dificuldade em ficar só comigo mesmo (com meu pensamento irrefreado), tendo sempre a necessidade de estar com algo ou alguém. Desde o início da minha devoção, portanto, livros, filmes, xadrez, futebol, basquete, tudo, absolutamente tudo, perdeu o efeito de desligamento de mim mesmo. Apenas você, em meu pensamento, possui agora esse estatuto. E é com você, ou com a representação que tenho de ti - o que mais poderia ter? -, que converso em todo momento. Continuo, por vezes, nossas conversas efetivas; por outras, remexo nestas mesmas, as tornando melhores ou mais dignas; e, também, nas raras vezes que a faço falar, fantasio perguntas feitas as quais jamais teria a coragem de fazê-las a ti, mas que, não por isso, também não gostaria que precisamente você as fizesse - nas conversas efetivas, reais.

Mas, ora. Já vi que isso aqui se perdeu totalmente e não foi a lugar algum. Alguém da tua inteligência, e sabes como gosto de enfatizar isto, mesmo tendo tu veementemente posto teu desgosto por elogios; enfim, alguém da tua inteligência com certeza percebe que esta carta é escrita antes para mim do que para você. O que seria essa busca analítica senão eu desesperadamente buscando um alívio para mim mesmo? E tu sabes também, certamente, que não é nem a resposta que anseio, mas unicamente o ato de escrever que me conforta - cético que estou, sei de antemão quão inalcançável uma resposta pode ser, ou mesmo é. Essa tentativa racional é uma externalização de minha devoção, no fim das contas. Não só não conseguirei explicá-la, como farei mais um devocionismo - e é isto que é, precisamente, esta carta.

Não só não escrevo a você, como você também nunca a lerá. Uns outros lerão. Mesmo que você esteja, eventualmente, entre esses outros, jamais saberás que é a ti escrita - mesmo porque não a é, precisamente. Uns outros que a leiam, e o Destino que trate de fazer o que bem entender. Meu papel está cumprido. Essa tentativa daqui a pouco já não mais será minha. Voltarei, portanto, à devoção.

Julius Schindler
Enviado por Julius Schindler em 21/10/2016
Reeditado em 25/10/2016
Código do texto: T5798337
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