"Todas as cartas de amor são ridículas"

Você deveria ter acreditado toda vez que disse coisas negativas a meu respeito. Não há palavra que eu mais tenha usado para falar de mim mesmo do que "fracassado". Eu sei, eu sei... tem uma conotação um bocado cômica, e sua autorreferência passa uma clara impressão de, ou exagero, ou de que não realmente me importo com o fato de ser fracassado. Desta última, precisamente, não posso tirar toda a verdade. De fato, em boa parte do tempo ser um fracassado não me faz sentir a miséria que sinto agora. Ora, creio ser até uma questão de sobrevivência. Busco sempre dar um sentido existencial, até poético, à minha incompetência para a vida. É preciso, em alguma medida, gostar de si mesmo, mesmo que esse gosto se paute no próprio fato de não ter nenhum motivo para gostar de si mesmo. Você, é claro, sendo algumas vezes mais inteligente que eu, deve ter percebido isso tudo, assim como deve ter percebido que falho miseravelmente em dar sentido à minha miséria e pauto ela, então, em algumas concepções pobres que nem ouso chamar de filosóficas, e, principalmente, em um gosto excessivo por personagens, tanto reais como fictícios, que trabalham com maestria a miséria sob contornos cômicos e trágicos.

Parei, agora, por alguns minutos, reli o que acabei de escrever, e não consegui precisar algum porquê para ter escrito essas coisas. Creio que o mais acertado seria dizer que busco dizer que você estava errada. Sim. Retomando o começo disso: você nunca acreditara em minha miséria; ou, ao menos, não tanto quanto eu. Fez-me sentir, por várias vezes, valorizado. É claro que não fora, nunca, de modo tão claro. Mas, o simples acontecimento de nossa amizade já caracteriza um marco para mim. Eu não consigo ser senão feliz com nossas conversas; e feliz, especialmente, nos momentos em que percebo que alguém como você tornou-se amiga de alguém como eu. Honestamente, até hoje não sei precisar como isso foi acontecer. Na verdade, faço até ideia. Fiz um esforço gigantesco, mas silencioso, para o começo de tudo - mas não quero entrar em detalhes disto.

Portanto, chego à conclusão sem me pensar demasiado que você fora a melhor coisa que me acontecera. Esse patamar de meu sentimento por você muito provavelmente escapou até mesmo à tua inteligência, mas é sempre possível a hipótese de que eu esteja enganado. Afinal, pode até ser provável. O fato de você ser algumas vezes mais inteligente do que eu corrobora justamente com a possibilidade disto. Talvez nossa relação fosse sempre guiada por um jogo de omissão: enquanto eu omitia o que realmente sentia por você, você omitia a percepção desse sentimento. Mas talvez não... talvez você negasse tua inteligência por um momento, e tentasse apenas desfrutar uma amizade. Aliás, essa negação caracteriza tua sensibilidade, tua maneira de ver o mundo; que, por fim, lhe faz uma pessoa triste. Ora, não poderia outro aspecto seu ser responsável por nossa aproximação. Eu sou também triste e, embora nunca tenha admitido com todas as palavras, você é muito mais. Há algo de honesto na tristeza, mas não consigo precisar o que consistiria essa honestidade. Sempre me pareceu que você tivesse reais problemas, portanto, honestos problemas; e eu, covardias. Cheguei a falar algo parecido para você, e você disse também ter muitas covardias. Bem, obviamente não se trata da mesma. Acho que deixei a minha clara, nesta carta, ao anunciar esse meu sentimento oculto por mim de nossa amizade; enquanto as suas (covardias) eram medos, e não há nada mais honesto que o medo.

Creio que preciso tornar evidente a minha covardia. Amiga, palavra, como atentei, não há nada que eu valorize mais que a nossa amizade. Mas eu não quero só isso. Até quis, por um momento; afinal, a honra é tanta que seria insensato pedir algo mais à vida. No entanto, Álvaro de Campos parece ter razão ao dizer que "a alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo". Ou seja, covarde que sou, sua amizade não bastou. Passei a querer vivê-la, estar com você a cada suspiro possível. Querer ouvi-la, nem que fosse teu silêncio. E o meu silêncio lhe oferecer inteiramente, pois não há nada útil que alguém como eu possa falar a alguém como você; o que faz desta carta um erro, uma covardia. E, afinal, há também razão em Álvaro ao dizer que todas as cartas de amor são ridículas.

Só espero que fiques bem.

Julius Schindler
Enviado por Julius Schindler em 19/10/2016
Reeditado em 25/10/2016
Código do texto: T5796187
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