Eufemismo, Subtons e o Senhor K
Belém, 23 de maio de 2016.
Caríssimas e Caríssimos,
Não que eu queira polemizar, nem sei se é o caso. Num momento altamente polarizado de opiniões no país, onde tudo é meio estranho, não gostaria de provocar desafetos, apenas reflexão. Sabe aquela máxima de Voltaire, “posso até não concordar com suas palavras, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”? Sei lá, parece até um crime hoje em dia concordar com ela. E estava muito taciturno sobre tudo que acontece nas redes sociais de ataque e contra-ataque não poucas vezes hostil, quando minha filha expressou uma sentença que me acordou: “viu, pai? Isso é muito eufêmico!”, comentando sobre uma medida do Governo Temer (o ilegítimo). Nem prestei a atenção no conteúdo, estava interessado no eufemismo detectado por uma jovem.
No dicionário-internet pesquisei a palavra e achei,
eufemismo
eu.fe.mis.mo
sm (gr euphemismós) Figura de retórica pela qual se suavizam expressões tristes ou desagradáveis empregando outras mais suaves e delicadas. Ex: Este trabalho poderia ser melhor (em vez de está ruim).
“Caramba, como o eufemismo tomou conta do Brasil!”, caduquei. Aqui e ali as palavras são bonitas, mas sugerem outra coisa se você atentar bem. Detalhes técnicos que causaram o impedimento de uma presidenta e assim 54 milhões de votos foram colocados a escanteio. Não que eu concorde com a forma com que o Governo Dilma levou seu mandato, aliás, chateio-me quando penso em Belo Monte e nos 45% do orçamento geral brasileiro para pagar “Juros e Amortizações da Dívida Pública”, que para bom entendedor, é pagar os grandes bancos com juros que o próprio Banco Central aponta (o quê??!!). Entretanto, a crítica a um determinado governante não pode colocar em risco a nossa já frágil Democracia, cheia de pendências enquanto justiça histórica, que digam as classes E, D, C, jovens, mulheres, negros, gays, indígenas. No meio de tantas argumentações pró e contra para defender suas teses, eis que chega um pico eufêmico das falas de início do Governo Interino (e não legítimo) e sua austeridade. Cortes sociais em algo já tão cortado para assim buscar o “equilíbrio fiscal”, que eu leio “garantia de pagamento dos credores”*, antes de qualquer medida mais robusta de manutenção ou melhoria de serviços básicos à população.
Em outro exemplo, nas linhas de Blairo Maggi (o super- sojeiro-ministro-da-agricultura-do-governo-temer-ilegítimo) senti a magia má do Eufemismo, no título de uma entrevista ao Estadão sobre a Demarcação de Terras Indígenas: “É preciso retirar o viés ideológico da discussão”, com reforço que “não é justo acomodar um índio e desacomodar uma família”**, um clássico que terei daqui pra frente quando tentar explicar o que é eufemismo. Que tentativa exemplar de ser politicamente correta a postura, o que deve soar maciamente nos três ossinhos do ouvido de quem está pré-disposto a concordar e garimpar justificativas para os atos até agora realizados de violência à Constituição! Como se fosse culpa dos “índios”, como se fazendeiros não fossem indenizados, como se um índio não fosse parte também de uma família. É obvio que existem casos que precisam de cuidados justos para não desmantelar um lar neste processo demarcatório, contudo, o maior desmantelamento na América Latina, gravado nos livros de História e defendido por historiadores íntegros tem sido o furto dos territórios indígenas em favor do dinheiro. Não se trata somente de “um índio” a compensar. A frase, se escutada direito, surge com subtons.
Subtons? Sim, uma categoria de sentença audível para quem está atento, algo muito bem descrito por José Saramago em suas obras. No livro o Homem Duplicado, é interessante quando o escritor reflexiona sobre os tais subtons, essa parte sutil –as vezes nem tanto - na fala das pessoas que habitualmente diz muito mais do que significam as simples palavras juntas que formam uma frase, no tupiniquim, as entrelinhas projetadas na fala. Desta forma, pensando na entrevista de Maggi, “Índio” tem o subtom seco de apenas um, um tipo, uma pessoa que pode atrapalhar uma família inteira, que transtorno causa por estar ali representando gerações e gerações pré-cabralianas... Se eu for reclamar deste emprego da frase, serei acusado de ter “viés ideológico”, mais delicado do que me chamarem de comunista, só que o pano de fundo é o mesmo, negar e anular a análise de quem alerta sobre o valor dos direitos universais, ação que poderia ser feita por você ou por mim. Outro dia percebi de um gestor público a vontade imensa de subjugar a pauta das comunidades agroextrativistas paraenses, mas não podia dizê-lo pois assim seria arredada a cortina da verdade e ali estaria um homem que não acredita na defesa de territórios comunitários. Nesta reunião em que participei, o dito gestor enrolou o máximo para evitar que sacássemos que no final das contas não iria atender as demandas das famílias, sendo diferente do simples burocrata enrolão: preferiu mencionar que as comunidades estavam desorganizadas e que isso atrapalhava o processo; por outro lado, descobriu-se neste encontro que ele atendera a outros rapidamente muito menos organizados que as primeiras, motivado por pedido de uma empresa que acompanhava e organizava este outro grupo. Sei...
O perigo de não trabalharmos em nós a capacidade de entender os eufemismos e os subtons é nos tornarmos marionetes, ou pior, sermos esmagados em nossos direitos. Depois de lido O Processo, de Franz Kafka, concluí que o Senhor K pode ser qualquer um de nós, torturado num mundo totalitário-jurídico-não-comunicativo, em que não há mais motivos para o Estado exercer suavidade e sim somente a execução das penas, sem questionamento, sem perguntas, sem dialogia, sem certezas, apenas o desespero de não sabermos porque estamos sendo punidos. Neste estado de coisas, o eufemismo e os subtons não combatidos anestesiam as pessoas para que o Estado-Empresa execute seus interesses inexoráveis.
Não espere um Golpe sempre sangrento, é mais lucrativo alienar. É acreditar que tudo que aconteceu no país até a retirada da presidenta Dilma Rousseff foi necessário e normal. Depois do bater panelas, o incomodante silêncio dos anestesiados, na pele preparada para o corte e implantação da tirania a te acariciar os cabelos, enquanto vem a lâmina. A Palo Seco.
Tomara que não seja esta pele nem a sua, nem a minha.
(*) No site da auditoria cidadã, entidade não governamental que estuda a Dívida Pública Brasileira, em 2014, o Brasil de todo o seu orçamento, destinou 45% dele para o pagamento de juros e amortizações; 22% para a previdência; 4% para a saúde; 3,7% para a educação; 3% para políticas de incentivo ao trabalho; 0,33% para segurança pública; 0,28% para ciência e tecnologia (fonte: http://www.auditoriacidada.org.br/palestras-da-auditoria-cidada-2015/) . Do total repassado para diminuir a dívida pública, os bancos nacionais e estrangeiros, seguradoras, investidores estrangeiros e seguradoras abocanharam 80% destes gastos.
(**) http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,e-preciso-tirar-vies-ideologico-da-discussao,10000052182
Belém, 23 de maio de 2016.
Caríssimas e Caríssimos,
Não que eu queira polemizar, nem sei se é o caso. Num momento altamente polarizado de opiniões no país, onde tudo é meio estranho, não gostaria de provocar desafetos, apenas reflexão. Sabe aquela máxima de Voltaire, “posso até não concordar com suas palavras, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”? Sei lá, parece até um crime hoje em dia concordar com ela. E estava muito taciturno sobre tudo que acontece nas redes sociais de ataque e contra-ataque não poucas vezes hostil, quando minha filha expressou uma sentença que me acordou: “viu, pai? Isso é muito eufêmico!”, comentando sobre uma medida do Governo Temer (o ilegítimo). Nem prestei a atenção no conteúdo, estava interessado no eufemismo detectado por uma jovem.
No dicionário-internet pesquisei a palavra e achei,
eufemismo
eu.fe.mis.mo
sm (gr euphemismós) Figura de retórica pela qual se suavizam expressões tristes ou desagradáveis empregando outras mais suaves e delicadas. Ex: Este trabalho poderia ser melhor (em vez de está ruim).
“Caramba, como o eufemismo tomou conta do Brasil!”, caduquei. Aqui e ali as palavras são bonitas, mas sugerem outra coisa se você atentar bem. Detalhes técnicos que causaram o impedimento de uma presidenta e assim 54 milhões de votos foram colocados a escanteio. Não que eu concorde com a forma com que o Governo Dilma levou seu mandato, aliás, chateio-me quando penso em Belo Monte e nos 45% do orçamento geral brasileiro para pagar “Juros e Amortizações da Dívida Pública”, que para bom entendedor, é pagar os grandes bancos com juros que o próprio Banco Central aponta (o quê??!!). Entretanto, a crítica a um determinado governante não pode colocar em risco a nossa já frágil Democracia, cheia de pendências enquanto justiça histórica, que digam as classes E, D, C, jovens, mulheres, negros, gays, indígenas. No meio de tantas argumentações pró e contra para defender suas teses, eis que chega um pico eufêmico das falas de início do Governo Interino (e não legítimo) e sua austeridade. Cortes sociais em algo já tão cortado para assim buscar o “equilíbrio fiscal”, que eu leio “garantia de pagamento dos credores”*, antes de qualquer medida mais robusta de manutenção ou melhoria de serviços básicos à população.
Em outro exemplo, nas linhas de Blairo Maggi (o super- sojeiro-ministro-da-agricultura-do-governo-temer-ilegítimo) senti a magia má do Eufemismo, no título de uma entrevista ao Estadão sobre a Demarcação de Terras Indígenas: “É preciso retirar o viés ideológico da discussão”, com reforço que “não é justo acomodar um índio e desacomodar uma família”**, um clássico que terei daqui pra frente quando tentar explicar o que é eufemismo. Que tentativa exemplar de ser politicamente correta a postura, o que deve soar maciamente nos três ossinhos do ouvido de quem está pré-disposto a concordar e garimpar justificativas para os atos até agora realizados de violência à Constituição! Como se fosse culpa dos “índios”, como se fazendeiros não fossem indenizados, como se um índio não fosse parte também de uma família. É obvio que existem casos que precisam de cuidados justos para não desmantelar um lar neste processo demarcatório, contudo, o maior desmantelamento na América Latina, gravado nos livros de História e defendido por historiadores íntegros tem sido o furto dos territórios indígenas em favor do dinheiro. Não se trata somente de “um índio” a compensar. A frase, se escutada direito, surge com subtons.
Subtons? Sim, uma categoria de sentença audível para quem está atento, algo muito bem descrito por José Saramago em suas obras. No livro o Homem Duplicado, é interessante quando o escritor reflexiona sobre os tais subtons, essa parte sutil –as vezes nem tanto - na fala das pessoas que habitualmente diz muito mais do que significam as simples palavras juntas que formam uma frase, no tupiniquim, as entrelinhas projetadas na fala. Desta forma, pensando na entrevista de Maggi, “Índio” tem o subtom seco de apenas um, um tipo, uma pessoa que pode atrapalhar uma família inteira, que transtorno causa por estar ali representando gerações e gerações pré-cabralianas... Se eu for reclamar deste emprego da frase, serei acusado de ter “viés ideológico”, mais delicado do que me chamarem de comunista, só que o pano de fundo é o mesmo, negar e anular a análise de quem alerta sobre o valor dos direitos universais, ação que poderia ser feita por você ou por mim. Outro dia percebi de um gestor público a vontade imensa de subjugar a pauta das comunidades agroextrativistas paraenses, mas não podia dizê-lo pois assim seria arredada a cortina da verdade e ali estaria um homem que não acredita na defesa de territórios comunitários. Nesta reunião em que participei, o dito gestor enrolou o máximo para evitar que sacássemos que no final das contas não iria atender as demandas das famílias, sendo diferente do simples burocrata enrolão: preferiu mencionar que as comunidades estavam desorganizadas e que isso atrapalhava o processo; por outro lado, descobriu-se neste encontro que ele atendera a outros rapidamente muito menos organizados que as primeiras, motivado por pedido de uma empresa que acompanhava e organizava este outro grupo. Sei...
O perigo de não trabalharmos em nós a capacidade de entender os eufemismos e os subtons é nos tornarmos marionetes, ou pior, sermos esmagados em nossos direitos. Depois de lido O Processo, de Franz Kafka, concluí que o Senhor K pode ser qualquer um de nós, torturado num mundo totalitário-jurídico-não-comunicativo, em que não há mais motivos para o Estado exercer suavidade e sim somente a execução das penas, sem questionamento, sem perguntas, sem dialogia, sem certezas, apenas o desespero de não sabermos porque estamos sendo punidos. Neste estado de coisas, o eufemismo e os subtons não combatidos anestesiam as pessoas para que o Estado-Empresa execute seus interesses inexoráveis.
Não espere um Golpe sempre sangrento, é mais lucrativo alienar. É acreditar que tudo que aconteceu no país até a retirada da presidenta Dilma Rousseff foi necessário e normal. Depois do bater panelas, o incomodante silêncio dos anestesiados, na pele preparada para o corte e implantação da tirania a te acariciar os cabelos, enquanto vem a lâmina. A Palo Seco.
Tomara que não seja esta pele nem a sua, nem a minha.
(*) No site da auditoria cidadã, entidade não governamental que estuda a Dívida Pública Brasileira, em 2014, o Brasil de todo o seu orçamento, destinou 45% dele para o pagamento de juros e amortizações; 22% para a previdência; 4% para a saúde; 3,7% para a educação; 3% para políticas de incentivo ao trabalho; 0,33% para segurança pública; 0,28% para ciência e tecnologia (fonte: http://www.auditoriacidada.org.br/palestras-da-auditoria-cidada-2015/) . Do total repassado para diminuir a dívida pública, os bancos nacionais e estrangeiros, seguradoras, investidores estrangeiros e seguradoras abocanharam 80% destes gastos.
(**) http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,e-preciso-tirar-vies-ideologico-da-discussao,10000052182