A INVEJA - Carta 100

A INVEJA

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Se quiseres ser feliz, conserva afastado da árvore da tua

felicidade o fungo do orgulho, o verme da inveja e a lagarta da

soberba (Provérbio hebraico).

Um filósofo do Rio de Janeiro pede alguns subsídios morais para

um traba-lho de pós-graduação.

Os pecados capitais que aprendemos nas catequeses primárias são sete e se caracterizam como atitudes humanas contrárias às leis divinas. São chamados capitais por serem a cabeça, e darem origem a outros pecados igualmente graves. São Gregório Magno († 604) definiu-os como sete: orgulho, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e preguiça. Até hoje na Igreja existe um consenso doutrinal sobre esta classificação. No século XIII outro teólogo, Santo Tomás de Aquino († 1274) consolidou essa nominata. Nosso tema de reflexão hoje vai enfocar a inveja.

O verbete inveja, no grego é fthónos, e indica um sentimento fora dos pa-drões. Os dicionários da língua portuguesa definem a inveja como um sentimento de cobiça à vista da felicidade, da superioridade de outra pessoa. Deste modo, in-veja ou invídia é um sentimento de aversão ao que o outro tem e revolta contra o que o próprio invejoso não tem. Este sentimento gera o desejo de ter exatamente o que a outra pessoa tem (pode ser tanto coisas materias como qualidades inerentes ao ser) e de tirar essa mesma coisa da pessoa, fazendo com que ela fique sem.

A inveja é um pecado gerado pelo egocentrismo e pela soberba. de querer ser maior e melhor que os outros (ou alguém em especial) não podendo suportar que o outro seja melhor. A inveja, junto com a soberba, foi o pecado que fez Adão, e com ele a humanidade toda, perder o paraíso... O diabo tem inveja do ser hu-mano, pois ele vai ser destruído um dia, e o homem será agraciado com a eterni-dade.

A origem latina da palavra inveja é “invidere” que significa não ver. Com o tempo essa definição foi perdendo o sentido e começado a ser usado ao lado da palavra cobiça, que culminou, então, no sentido que temos hoje. Os indivíduos disputam poder, riquezas e status, e aqueles que possuem tais atributos sofrem do sentimento de inveja dos que não possuem, que almejariam ter tais atributos. Isso em psicologia é denominado formação reativa: que é um mecanismo de defe-sa dos mais fracos contra os mais fortes.

Todo o invejoso se revela um incompetente. Porque não consegue ter as coi-sas que o outro tem, ele se frustra, fica infeliz e ambiciona ilicitamente aquilo que não consegue obter. Em geral, o invejoso lança seu despeito contra os bens mate-riais dos outros, assim como outros valores, tipo prestígio, inteligência, cultura, capacidade de comunicação, status social, harmonia familiar e percepção das coi-sas que dão sentido à vida. É interessate observar que todos esses fatores, ou a maioria deles, são possíveis de adquirir com trabalho, esforço, estudo, bom círculo de amizades, cursos de especialização, diálogo, etc.

O indivíduo invejoso sempre julga que suas coisas – mesmo que não o se-jam – são melhores que as dos outros, tudo com o intuito de se promover, de su-plantar e afirmar que é melhor. Esse tipo de competição é fruto da inveja. Diz-se que quem odeia é assassino, pois no seu coração já matou o desafeto. E quem inveja? O invejoso é como um ladrão, pois em seu coração quer se apropriar das coisas do outro. Quem tem inveja nunca digere adequadamente a cultura, a sabe-doria e o sucesso de outra pessoa. Ao sentir-se menos aquinhoado por dons e ta-lentos, ele se considera um injustiçado, revoltando-se às vezes até contra Deus. E por isso inveja.

No Rio Grande do Sul, há um pássaro muito curioso, o chupim, um preda-dor das lavouras de grãos, que não constroi seu ninho, mas ocupa a morada já construída pelos outros. O invejoso em geral é assim. Ele não constroi sua vida, mas “cai de paraquedas” em grupos sociais, se encostando-se no prestígio e na capacidade das outras pessoas – a quem inveja – para atingir seus objetivos infe-riores. Na sociologia ele tem o nome de arrivista. A inveja é originária desde os tempos imemoriais do princípio do mundo. Ela seria, popularmente falando, “a arma dos incompetentes”. Nela vem sintetizada, na cultura popular, tudo de ne-gativo e nocivo, e desta forma é encontrada nos parachoques dos caminhões, nu-ma expressão chula que a compara com fezes. Há tempos um invejoso ficou in-dignado quando descobriu que eu havia sido convidado para uma entrevista num talk-show em São Paulo, numa rede de televisão.

Numa outra perspectiva, a inveja também pode ser definida como uma von-tade frustrada de possuir os atributos ou qualidades de um outro ser, pois aquele que deseja tais virtudes é incapaz de alcançá-la, seja pela incompetência e limita-ção física, seja pela intelectual. No decálogo inveja e cobiça vem probidas no nono e no décimo mandamento da Lei de Deus.

O pecador, porém, não pode ver o justo sem inveja, range os

dentes e definha; a ambição dos maus fracassará (Sl 112,10).

Ter inveja indica que não estamos satisfeitos com o que Deus tem nos dado. A Bíblia nos diz que devemos estar satisfeitos com o que temos, pois Deus nunca vai nos deixar ou abandonar (Hb 13,5) e sempre vai nos dar aquilo que precisa-mos. Para combater o sentimento de inveja, precisamos nos tornar mais como Je-sus e menos como nós mesmos.

Podemos fazer isso ao estabelecer um relacionamento pessoal com Deus. Podemos conhecê-lo mais através de estudos bíblicos, oração e frequência à litur-gia da Igreja. À medida que aprendemos a servir a outras pessoas ao invés de apenas a nós mesmos, nossos corações começam a mudar. Sobre isto advertiu São Paulo:

Não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transformem-

se pela renovação da mente, a fim de distinguir qual é a

vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável a ele, o que

é perfeito (Rm 12,2).

No Antigo Testamento o ciúme e inveja do rei Saul contra Davi (cf.1Sm 22,17ss) mostrou até que ponto vai a perversidade do ser humano, capaz de reco-nhecer o mérito das pessoas, transformando tudo em um sentimento negativo de inspiração maligna. Foram esses vícios, entre outros, que provocaram a indigna-ção de Javé contra o rei, a ponto de tirá-lo do poder. A inveja também fez Satanás tentar a Jesus (cf. Mt 4,1-11), na esperança de desviá-lo de sua missão.

Os pecados capitais, como foi dito, são faltas morais que encabeçam a lista dos grandes pecados, capazes de gerar outros tão graves quanto eles. O Catecis-mo da Igreja nos fala sobre as penas do pecado:

Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, é preciso admitir que o pecado tem uma dupla conseqüência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, consequentemente, nos toma incapazes da vida eterna; esta privação se chama "pena eterna" do pecado. Por outro lado, todo pecado, mesmo venial, acarreta um apego prejudicial às criaturas que exige purificação, quer aqui na terra, quer depois da morte, no estado chamado “purgatório”. Esta purificação liberta da chamada "pena temporal" do pecado. Essas duas penas não devem ser concebidas como uma espécie de vingança infligida por Deus do exterior, mas, antes, como uma conseqüência da própria natureza do pecado. Uma conversão que procede de uma ardente caridade pode chegar à total purificação do pecador, de tal modo que não haja mais nenhuma pena (1472).

A inveja é um vício capital. Designa a tristeza sentida diante do bem do outro e do desejo imoderado de sua apropriação, mesmo indevida. Quando deseja um grave mal ao próximo, é um pecado mortal: Santo. Agostinho via na inveja “o pecado diabólico por excelência".

"Da inveja nascem o ódio, a maledicência, a calúnia, a alegria

causada pela desgraça do próximo e o desprazer causado por

sua prosperidade” (Catecismo 2529).

As Sagradas Escrituras, a partir do Antigo Testamento nos mostram uma série de citações a respeito dos pecados capitais, especificamente do nosso tema aqui proposto: a inveja.

O coração tranqüilo é a vida para o corpo, mas a inveja é a

podridão nos ossos (Pv 14,30).

Ao despeito mata o insensato e a inveja causa a morte do

imbecil (Jó 5,2).

Cruel é a raiva e impetuosa a ira: mas quem pode resistir à

inveja? (Pv 27,4).

Pela inveja do diabo a morte entrou no mundo, que é

experimentada por aqueles que pertencem a ele (Sb 2,24).

Não vou caminhar com a inveja que consome, porque ela não tem

nada em comum com a sabedoria (Sb 6,23).

A inveja e a ira abreviam os dias, e a inquietação acarreta a

velhice antes do tempo (Eclo 30,24)

Nos escritos inspirados do apóstolo Paulo e seus contemporâneos cristãos vemos que quaisquer sentimentos dessa ordem ferem a ética e o espírito das bem-aventuranças, pois se opõem ao amor – que não é invejoso nem orgulhoso, tudo suporta e não se alegra com a injustiça (cf. 1Cor 13, 4-7).

Não sejamos ambiciosos de glória, provocando-nos mutuamente

e tendo inveja uns dos outros (Gl 5,26).

Essa (espírito de rivalidade) não é uma sabedoria que vem do

alto, mas é terrena, animal e diabólica. (Tg 3,15).

Onde há ciúme, inveja e espírito de rivalidade, existe também

desordem e todo o tipo de más ações (Tg 3,16).

Na teologia medieval podemos encontrar muitas lições de autores clássicos contra o mal da inveja que sempre assolou a sociedade humana. Deste modo po-demos ver – a partir dos ensinamentos do Mestre Eckhart († 1328) – as “sete co-vas do invejoso”. Segundo o pensador alemão, a inveja

 Transforma o invejoso em assassino (Gn 4,1-8);

Caim, por causa de inveja matou se irmão Abel.

 Faz adoecer (Pv 14,30);

O invejoso atrai sobre si o mal que sua revolta assesta contra

aque-le(s) a quem inveja.

 Aprisiona (Tg 4,2);

A inveja cria um circulo vicioso capaz de criar um tipo de

dependên-cia.em quem a pratica.

 Atrai mentiras (Tg 1,26);

Um dos componentes da inveja é a mentira; aquela que o

invejoso usa, consigo mesmo, para justificar suas atitudes.

 Destrói reputações (1Pd 2,1);

Mentindo, o invejoso denigre a reputação do invejado.

 Faz sofrer (Ecl 4,4);

Embora se diga que o invejoso, como o ciumento, sofre e faz

sofrer, nota-se que o maior sofrimento recai sobre ele mesmo,

pois em mui-tos casos o alvo de sua patologia nem nota o

que acontece.

 Cria divisões na Igreja (2Cor 12,20)

São Paulo advertiu que a inveja boicota a vida em

comunidade, crian-do divisões no “Corpo de Cristo”.

No aspecto psicológico se observa que a inveja é uma força de doença men-tal que se reflete no comportamento. O invejoso, a pessoa que adquire esse mau hábito, não consegue mais se livrar dele e segue, pela vida afora, invejando os outros, passando deste para aquele alvo, assumindo a inveja como uma compul-são psíquica. Como não tem as coisas ou os talentos, se contenta em invejar os que foram aquinhoados com aqueles bens ou virtudes. Inconformado com o su-cesso dos outros, o invejoso difama, para diminuir os méritos e trazer o outro à inferioridade de seu nível.

Mesmo assim, as pessoas de maior sensibilidade chegam a notar ou sentir um desconforto provocado pela inveja, no trabalho, na família, nos ambientes so-ciais, nas comunidades religiosas, esportivas, culturais, etc.. O invejoso geralmen-te não sabe fazer as coisas, não tem aptidão para esse ou aquele exercício, mas não admite o sucesso alheio, e por isso denigre, põe defeitos ou alimenta um sur-do sentimento de revolta. Como não tem brilho próprio, acusa o outro de “querer aparecer”. Na falta de talento, se encosta nos outros para roubar um pouco do bri-lho alheio. Aí aparece o plágio, a cooptação de atitudes e a apropriação de idéias, trabalhos profissionais, escolares, etc.

Na minha terra tem um ditado popular, de livre curso no meio rural que diz “praga de urubu não mata cavalo gordo”, com relação à inveja das pessoas. Mes-mo assim, por conta da chamada “lei da atração” é bom que a gente sempre esteja atento a esses assaltos do mal. Quando nos persignamos “pelo sinal da Santa Cruz † livrai-nos Deus Nosso Senhor † dos nossos inimigos †” estamos clamando a Deus para que não nos deixe cair no pecado da inveja, bem como nos defenda da ação dos invejosos. A oração nos defende do inimigo maior, o diabo.

No filme “Mulher solteira procura”, uma moça subaluga um quarto de seu apartamento a uma jovem, que se revela uma invejosa compulsiva. A inquilina começa copiando o penteado e a maneira de vestir da dona da casa, e termina por roubar-lhe o namorado, que acaba sendo assassinado pela vilã. Vista sob a ótica da psicanálise, a inveja se trata de uma compulsão, uma patologia que precisa ser tratada. Se você compra uma coisa, um bem qualquer, o invejoso também quer adquirir algo igual, mesmo que vá se endividar logo ali adiante... Se fala sobre determinado assunto que domina, o invejoso para demonstrar sua “sabedoria” logo dá seus “pitacos” para exibir sapiência, pois não quer ficar por baixo na con-versa... Mais do que os bens materiais, o que mais desgasta um invejoso é o des-taque social, o sucesso e a cultura das outras pessoas.

Nesse terreno há pessoas que se sugestionam com a inveja dos outros e ca-em naquilo que a parapsicologia chama de subjugação psíquica, que nada mais é do que criar uma atração. Ao imaginar o “olho grande” de alguém sobre coisas e bens, acabam eles próprios atraindo sobre si esses malefícios. A subjugação psí-quica, que não tem nada de sobrenatural precisa ser tratada pelos profissionais do comportamento.

Voltando ao campo da espiritualidade, vemos que a variedade dos pecados humanos é grande. As Escrituras, como se viu acima, nos fornecem várias listas desses desajustes. Na carta aos gálatas, por exemplo, São Paulo opõe as obras do egoísmo aos frutos do Espírito, onde cita a inveja como uma das mais grotescas “obras da carne”.

As obras dos instintos egoístas são bem conhecidas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes. Repito o que já disse: os que fazem tais coisas não herdarão o Reino de Deus (Gl 5,19ss).

Em outra ocasião, escrevendo ao parceiro Timóteo, Paulo afirma a necessi-dade da superveniência do bem sobre aquelas obras, fruto dos instintos desones-tos.

Isto é o que você deve ensinar e recomendar. Pois, quem ensina coisas diferentes, que não concordam com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensinamento conforme a piedade, é cego, não entende nada, é doente à procura de discussões e brigas de palavras. É daí que nascem invejas, brigas, blasfêmias, suspeitas, polêmicas intermináveis, coisas típicas de homens de espírito corrupto e desprovidos da verdade (1Tm 6,2-5).

Tem gente que tem rezas cabalísticas e outras superstições para se proteger do mal. Ao contrário, conheço pessoas que usam orações e salmos específicos co-mo instrumento de defesa contra as insídias do mal, especialmente da inveja, do ciúme, do egoísmo e da malquerença. Muitos tem, em suas casas, a Bíblia aberta no salmo 91 e outras no 121, que são textos específicos de proteção aos filhos de Deus que tem fé no poder do Pai:

Você que habita ao amparo do Altíssimo, e vive à sombra do Onipotente, diga a Javé: Meu refúgio, minha fortaleza, meu Deus, eu confio em ti! Ele livrará você do laço do caçador, e da peste destruidora. Ele o cobrirá com suas penas, e debaixo de suas asas você se refugiará. O braço dele é escudo e armadura. Você não temerá o terror da noite, nem a flecha que voa de dia, nem a epidemia que caminha nas trevas, nem a peste que devasta ao meio-dia (91,1-6).

Ergo os olhos para os montes: de onde virá o meu socorro? O meu socorro vem de Javé, que fez o céu e a terra. Ele não deixará que o seu pé tropece, o seu guarda jamais dormirá! Sim, não dorme nem cochila o guarda de Israel. Javé guarda você sob a sua sombra, ele está à sua direita. De dia o sol não ferirá você, nem a lua de noite. Javé guarda você de todo o mal, ele guarda a sua vida. Javé guarda suas entradas e saídas, desde agora e para sempre (121,1-8).

Como todo comportamento que foge à ética social e à moral cristã, a inveja precisa ser combatida pela própria pessoa com uma ascese de vida, autocontrole, espírito de oração, exercícios espirituais, vida sacramental consciente, estreito convívio familiar, boas leituras, repartir o problema com alguém de confiança e, sobretudo, adotar um espírito de muita vigilância.

Por falar nisto: como estamos nesse aspecto? Invejamos os dons e os caris-mas de alguém? Tem alguém de quem sentimos algum tipo de inveja? Achamos que Deus, por dar dons aos outros é injusto conosco? Como podemos fazer para corrigir ou evitar esse tipo de comportamento? Como Deus pode nos ajudar na libertação desse mal?

O autor é Escritor, Filósofo e Doutor em Teologia Moral. O presente texto é base de uma conferência ministrada em um movimento de apostolado leigo (MFC) em uma comunidade cristã em Porto Alegre (agosto de 2011).