A paz é uma conqusta (Carta 097)

Carta 097

A PAZ É UMA CONQUISTA

Uma religiosa de Belo Horizonte, cursando uma pós-graduação em

Espiritualidade (Teologia Dogmática) pede alguns subsídios sobre

o “Shalom” (a paz de Deus) em vista a um capítulo que pretende

inserir em seu trabalho de conclusão.

Prezado amiga,

Paz e bem!

Paz, nos dias de hoje, é uma riqueza duramente buscada e raramente atingida. Acho que não é atingida porque é buscada entre as coisas sofisticadas do mundo e ela é simples. É pretendida pelos poderosos e é livre. Anunciada pelos ricos, mas é gratuita... Paz, no mundo moderno é uma das expressões que tiveram seu sentido mais deturpado e mais subvertido. Em alguns casos, até prostituído, eu diria. Em nome dela quantas injustiças já foram cometidas; quanta violência já aconteceu, quantas lágrimas derramadas... Como é fácil notar, a paz é uma grandeza complexa, tão próxima e tão distante. A quem luta pela paz, que busca a paz e se torna semeador dela na sociedade humana, são dedicados muitos trabalhos a esse respeito. Em nossos dias nunca se falou tanto em paz: ela nunca foi tão ambicionada e tão violada.

O mundo de hoje, com tantos avanços na tecnologia, nas comunicações e nas ciências, evoluiu bastante, fez descobertas e inventos de admiráveis progressos, mas esqueceu de “fabricar” a paz. O grande inimigo – e ao mesmo tempo meta do homem de nossa era – é um conjunto de coisas que em uma criação nova de palavras, dizemos ser a idolatria do egoísmo, onde o ter, o prazer e o poder são as vigas mestras que sustentam seu templo. Ter, poder e prazer não são coisas novas. Por elas, o povo que marchava no deserto sofreu castigos, e muitos se perderam. Por essa busca desordenada, até hoje muita gente se corrompe, se vende, se prostitui, justamente porque pensa com essas três coisas comprar vida, possuir o mundo, fabricar felicidade e conquistar a paz; Ah, que ledo engano!

“Ah, se os homens soubessem de onde pode lhes vir a paz!”

O ter nos força a possuir bens cada vez mais. Ele desencadeia a ambição, gera uma sede que só pode ser aplacada com mais coisas materiais. Quem busca ter mais nunca se sacia, entrando numa ferrenha batalha que cega, que leva à perda dos freios da ética e do respeito.

O prazer é capaz de acorrentar por diversas formas. Ora é o prazer sensível das coisas materiais, ora é o sexo buscado de forma indiscriminada e promíscua, que ao invés de acalmar mais acende, ao contrário de unir, desagrega. Certo tipo de prazer flui como um visgo pegajoso pela boca dos falsos amigos, dos interesseiros que nos bajulam para obter favores, para roubar um pouco do nosso brilho.

O poder é a terceira coluna do egoísmo. Os poderosos geralmente se colocam em posição de resguardo de seus argumentos. Raras vezes o poder é usado como serviço, mas quase sempre como forma de dominação, como maneira de oprimir e impor ideais ilegítimos e ilícitos que visam a satisfação de pequenos grupos de sustentação.

Fácil é a gente constatar que nós, pessoas de hoje, somos tentados à adoração dessa sinistra trilogia, imposta sob uma falsa máscara da paz. A vida está justamente do lado oposto desse culto pagão. Ali está o amor, a luz, o perdão, a esperança e a paz...

O fato é que quando se perde a paz muitas coisas “vão para o espaço”. Fica prejudicado o amor, a solidariedade é o relacionamento com Deus. Paz e amor são valores que sempre andam juntos, de mãos dadas. Quem ama a Deus, que é paz, traz paz para sua vida, Judas rompeu com Jesus, assim como muitos de nós costumam fazer hoje em dia. Muitos rompem por causa do dinheiro, do poder, de coisas materiais. Esse rompimento nos separa de Deus e das pessoas, mas também cria em nós um distanciamento do amor, do perdão, da amizade e da paz.

Voltando ao assunto, notamos que Judas rompeu com Jesus e assim perdeu a paz. Não conseguindo encontrá-la nas falanges guerrilheiras da Palestina, nem no dinheiro mal havido, nem na amizade com os poderosos, desesperado viu que havia perdido a maior chance de viver a paz, e foi suicidar-se.

O problema maior de Judas não foi a traição, afinal tantos já haviam traído. Muitos traem até hoje, através do egoísmo, da luxúria, da ambição. Judas não perdeu a paz apenas porque errou, Não foi a traição, não foi a desonestidade em receber o dinheiro dos fariseus nem a simpatia pelos zelotes revolucionários. A perdição de Judas ocorreu por causa de sua falta de fé: fé em Deus, naquele que é paz e dá a paz. Fé, também em Jesus Cristo, o filho de Deus, que nos traz a alegria, a vida abundante e também a paz.

Desesperado, Judas divorciado da fé e do amor, perdeu sua paz e com ela a sua vida, porque esqueceu uma coisa fundamental, que no caso, poderia ter-lhe restituído a paz e com ela a alegria de viver: a misericórdia de Deus. É certo que mesmo Judas, ladrão, pecador, traidor, arrependido e suplicante da misericórdia de Deus, teria obtido o perdão. Ele se perdeu quando perdeu a confiança no perdão de Deus, e assim perdeu a esperança e com ela a sua paz.

Caindo em si, ele buscou não o perdão que dá a paz, mas tentou “recomprar” a Jesus pelas mesmas trinta moedas. Os príncipes e os fariseus não estavam dispostos a desfazer a negociata. Como não buscou outro recurso, além da troca mercantil, achou melhor enforcar-se nos galhos de uma figueira. O perdão nos traz a paz, pois une o que está rompido. Quantas vezes, reconciliando-nos com nossos desafetos, nos sentimos livres, leves e soltos, naquela gostosa sensação de paz que o perdão e a reconciliação nos dão.

A pessoa rompida com Deus é um homem desconfiado de si, da vida, dos outros e da esperança. A falta de paz , o vazio da presença de Deus em nossa vida nos deixa temerosos, sorumbáticos, com mania de perseguição. Ocorrido o perdão, acontecida a reconciliação, o homem se torna alegre, vivaz, descontraído e loquaz. Deus nunca propõe a ruptura; nós é que muitas vezes a propomos, por nossos atos, por nossos pecados, por nossas omissões.

Deus nunca rompe conosco. Como um pai, rico em misericórdia ele sempre nos espera para aquele abraço sem fim, para aquele shalom que só a graça do perdão e da reconciliação pode conferir.

Shalom é a paz de Cristo, afinal, ele é a nossa Paz (Ef 2,14). Há tempos eu andava pela rua quando vi no vidro traseiro de um carro a seguinte equação: EU + JESUS = PAZ. Andei algumas quadras atrás daquele carro tentando dissecar a mensagem que o adesivo emitia. Na simplicidade daquele escrito consegui ver resolvida a grande equação da felicidade da vida humana, somar-se a Jesus para chegar à paz.

Sem mim nada podeis fazer!

É salutar observar que o verbete shalom, no hebraico não se limita ao estrito sentido da paz, mas agrupa em si mais de vinte sentidos, como amizade, fartura, amizade, doação, etc.

Como é então que alguns pobres materialistas tentam se apoiar na ciência, no dinheiro, na força, no prestígio, para conseguir levar avante algum projeto? Quando alguma coisa vai mal será que não é porque falta algum “sócio de peso” no negócio? Quando nossas ações não vão bem, não estaria o termo mais importante daquela equação... JESUS?

Quando ressuscitou, o Mestre se apresentou no meio de seus amigos e, por duas vezes disse: “A paz esteja convosco... dou-vos a minha paz!”. Por que esta repetição? Será que os discípulos não ouviram na primeira vez? Será que não havia paz por ali? Ou será que era pelo fato de eles ainda não acreditarem no “vimos o Senhor” anunciado pelas mulheres? Se não acreditavam, faltava-lhes a fé; onde falta a fé invariavelmente se instala a dúvida. Onde há dúvida não pode haver paz.

Logo, era necessária uma ênfase especial: os votos de paz tinham que ser fortes para poderem despertar aqueles homens de seu sono e abrir-lhe os olhos para a presença do Ressuscitado no meio deles. Jesus chegou, se colocou entre os discípulos e a paz começou a acontecer por ali.

Assim pode acontecer conosco se, vendo o Senhor o convidarmos para cear conosco, Nossa vida torna-se rica de esperanças, cheia de presenças que apaziguem e silêncios que harmonizem. A paz de Cristo nos pede comprometimento total com ele e com os irmãos. Não podemos cear com ele enquanto lá fora alguém passa fome ou sofre injustiças. A vida cristã de verdade nos impele ao compromisso, que perpassa nossa a nossa pessoa e vai desembocar nas carências do próximo. Se quisermos estar com ele em Caná, ou acompanhá-lo na subida do Tabor, temos que também palmilhar com ele as pedregosas ruas de Jerusalém, em direção ao Calvário. A doação de paz foi um gesto de amor:

Dou-vos a minha paz... não como o mundo a dá...

Claro que não pode ser assim. A paz do mundo, além de extremamente frágil e pragmática, não é dele. O que ele dá, de repente tira, Não é uma paz constante, duradoura. Reside aí a grande diferença entre a paz e o SHALOM. Enquanto a primeira palavra significa algo humano e – como tal – falível, a segunda exprime a verdadeira paz, a paz perfeita que anima, que conforta, que dá esperança, que vivifica a fé. SHALOM significa, além de paz, o amor, o perdão, o aconchego, a fartura dos dons e a justiça perfeita.

Na minha casa há um SHALOM. É um conjunto de letras de madeira, penduradas verticalmente umas nas outras, formando a palavra hebraica. Recebi-o de presente do meu pai no Natal de 1983, menos de um mês antes da sua morte. Foi um presente conjunto do casal naquele Natal. Meu pai foi um homem extremamente bom, um pai de verdade que me ensinou muito sobre dignidade, não-violência, perdão e respeito pela pessoa do semelhante. Aquele SHALOM me exorta , todos os dias, a viver a verdadeira paz, e não só vivê-la para mim, , mas ser um instrumento de paz para os outros.

Meu pai ao partir deixou-me um SHALOM; nunca me esquecerei dele... Oro sempre para que o SHALOM me acompanhe por toda a minha vida. Se SHALOM quer dizer paz de Cristo, paz de Cristo significa para nós uma obrigação de vida nova, um nascer de “homem novo”, um caminhar com os irmãos, para a frente e para o alto, como cristãos verdadeiros que andam na luz da verdade de Deus, que demonstram sua justiça em suas vidas, que não mantêm convênios espúrios com o pecado, que amam a seus irmãos, que são semeadores do evangelho, que são construtores de um mundo melhor, mais justo, mais fraterno, de mais paz...

Um abraço

E a paz de Cristo esteja com você!

Galvão é escritor, autor de mais de cem livros, publicados no Brasil e exterior, entre eles “A conquista da paz”. Ed. Paulus, 1996. 2ª edição. O mesmo livro foi publicado em Portugal como “Shalom – Paz”, Ed. Porto, 2002.