Um Velho Novo Rascunho

Se te escrevo é porque me dói. A vida anda complicada. Eu me insiro em enrascadas que não sei sair sozinho depois. Uma amiga diz que eu fui gato na outra vida, e tenho certeza de que não é por causa da preguiça ou da falta de interesse, mas sim por que escalo árvores que sei que não conseguirei descer sem ajuda. Seja minha bombeira e me ajude: o que faço? Estou perdido, cara... Não estava nos meus planos me confundir assim... Estou me sufocando no meu próprio saco cheio, entende? Estou com os olhos esgazeados e ardentes, abrindo e fechando a boca feito um louco. Virei um peixe. Virei aquele peixe de festa que você de vez em quando vai se distrair jogando um pedaço de bolo dentro do aquário. Você sabe o quanto me custa cada reticência nesta carta? Não as suporto! E elas não passam de reflexos do meu estado atual: uma reticência. Uma reticência cega, que não vê o que virá depois. Uma reticência que se encerra; que encerra um período que sempre quis iniciar. E que foi tão sofrível de se iniciar... Vê? Outra. Estive pensando bastante no filme que você me emprestou. Control, né? Eu sempre fui meio encanado com essas coisas de suicídio; sempre tive essa curiosidade mórbida sobre os motivos e os meios utilizados; chumbo, lâminas, trilhos, vôos, overdoses, monóxido de carbono, forcas... Ah, maravilha! Desde que passei a ouvir Joy Division, vejo como algo óbvio o suicídio do Ian. Não se pode viver sendo pródigo e atemporal sem que isso traga consigo um quinhão de amargura; não se pode viver achando-se medíocre quando um incontável número de pessoas dariam a alma para ser ou ter você sem que isso acabe com sua cabeça, com seu discernimento. Não, talvez ele só estivesse de saco cheio mesmo. Mas, será? Enfim. Já fazia algum tempo que eu não pensava em filled my head up with piece of lead (como canta a música), e hoje, lá, lá em cima; lá onde é possível deixar de existir só passando a perna por cima de meio metro de muro e despencar vinte andares até o asfalto, eu lembrei do Control. Ah, caralho! Existem problemas que por mais simples que possam ser, por mais que sejamos avisados antes de entrarmos neles de cabeça, simplesmente não podem ser resolvidos sem uma bela de uma expiação. Se eu te escrevo isso e sôo cínico como de praxe, se desengane: estou emocionado. Minhas mãos tremem e digito palavras que não existem. Estou cansado de sopesar tudo, e tudo ser certo e natural. O mundo não suporta a minha ambigüidade, a minha ambivalência, a minha mania de grandeza, a minha mania de duplicidade. O mundo não suporta que eu tenha um coração assim, volúvel e aprazível, tenro e quente e frio. Por que continuar nisto? Quantas pessoas mais magoarei? Quantas mágoas mais terei de ser impetrante e impetrado? Eu não suporto esse mundo unilateral! Eu não suporto esses preceitos extremamente arraigados em mim me dizendo estou sendo egoísta de acordo com uma moral arcaica quando estou fazendo o que me faz bem, o que é de meu direito fazer, e, por conseguinte, fazendo bem a outras pessoas. Se eu te escrevo e sou coerente, não se engane: se te escrevo é porque não consigo concatenar meio pensamento sem que a coerência sacuda um lenço branco a quilômetros daqui, cheia de saudades de mim. Estou chorando, cara... Estou chorando porque lembro dos seus olhos marejados me dizendo que não queria, mas tinha de ir. Que precisava ir, pelo nosso bem. Me conhecia tanto! Meu oráculo, meu sustentáculo de amor-e-ódio, que foi-se de repente, num abrupto e irreversível acesso de liberdade. Voou para longe; acompanhou os solos do Jesus Mascis e desapareceu em céus azuis cujos resquícios que me cabem é ficar a contemplar com os braços esticados, tentando alcançar, em vão, em vão, em vão...

26/03/2012 – 17h30m

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Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/03/2012
Reeditado em 26/03/2012
Código do texto: T3577394
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