Laranja

Um feixe de luz, filtrado pela cortina alaranjada, me tirou de um sono conturbado. A súbita consciência da precariedade da minha situação fez com que uma pontada dolorida tomasse forma no meu peito. Então é assim que se acorda no primeiro dia sozinho no mundo... Mesmo que não se esteja completamente sozinho; não de imediato. Ela ainda está ao meu lado. Basta eu virar e encarar seu semblante adormecido. É desoladora a sensação de ter perdido o chão. A moral. O amor. Talvez a animalidade da carne ainda funcione; as pessoas gostam de transar depois de uma boa briga, depois de uma boa morte. Se eu acordá-la cobrindo sua bunda de beijos talvez a coisa funcione novamente. Talvez. Mas me sinto andrajoso só de pensar em boliná-la. Talvez ela acorde e queira que eu faça isso; talvez eu adormeça e ela me acorde com bolinação. Sempre foi assim. Antes de dormir, com gosto de pasta de dente; depois de acordar, com o ranço do sexo anterior impregnado na saliva. Mas me sinto um fiasco só de me imaginar dentro de seu corpo - é como se eu fosse portador de uma lepra de alma extremamente contagiosa. Transmitida via uretra. Transmitida por essa minha boca suja de canalha mendaz. Meus olhos ainda ardem por causa do sal que as glândulas lacrimais fabricaram nas duas últimas noites. Esta é a segunda manhã de tudo; isso que sinto são os escombros de um castelo que desmoronou. O resto de tudo. Com minhas pálpebras intumescidas e semicerradas; com meus olhos vermelhos e apequenados; com os meus nervos saltados e independentes: este pensa em suicídio; aqueloutro pensa em ir embora sem dizer palavra; destoutro quer sexo selvagem. Não sei o que fazer. Meu orgulho me impele a não fazer nada, mas não fazendo nada não acontecerá nada, e não acontecendo nada ficarei eternamente confortável e acovardado em cima de um muro de dois palmos de altura. A nomenclatura correta seria "MEDO"? Medo do incognoscível que meu autoconhecimento surtirá no porvir? É numa manhã assim que o cara decide se trancar num porta-malas com um botijão de gás vazando e acender um cigarro. Pior é que meus pensamentos se baralham e atropelam uns aos outros. Não consigo me firmar por mais do que dois minutos em alguma idéia. Não consigo condensá-los, sintetizá-los, fazê-los palavras redentoras. Se ao menos meu sono voltasse. Se ao menos eu conseguisse esquecer por dois segundos que sou inteiramente responsável pelo arco-íris cinza que paira acima de nossas cabeças. É por isso que as pessoas resolvem se casar: porque contratos são assinados. A separação dói. O divórcio dói. A divisão de bens dói. A única parte do corpo que dói num casal casado é o bolso. Minha dor é na alma. Se é que eu tenho uma. E, se tenho, neste momento ela está em posição fetal na minha garganta, comprimindo-a, sufocando-me. Uma palavra correta na hora certa poderia fazer com que pulássemos em sincronia por cima dessa barreira barrenta que sujou nossos pés que caminhavam tão juntos e lineares e sincronizados e limpos. De mãos dadas, olhando um pôr-do-sol atrás do Alves com fumaça densa de ganja rodopiando à nossa volta em alguma tarde saturnina do futuro; medo dos meus abismos; olhares ternos à luz do abajur; sabonete dançando pelo corpo nu e molhado; cingidos, amalgamados; amantes em volúpia numa manhã de domingo chuvoso; qualquer coisa inadvertidamente interrompida pelo acaso maltrapilho e concupiscente de um minuto de glória falha. O que puder surgir entre meu sono e seu waking up. Uma camisa-de-força invisível, um apertado garrote com linha de pesca ou almas-de-gato bicando meus olhos. Às seis da manhã, de cuecas, na última manhã de tudo, na primeira manhã do nada. Com cheiro de cio incrustado no septo, olhando pro teto, com tatuagem coçando, com um joelho sobre minha barriga, e um sorriso de quem dorme em paz. Dos tempos eu que eu só era feliz dormindo. Dos tempos em que ela dizia que eu ficava bonito dormindo. Dos tempos em que seria uma bênção manter-me lindo e feliz pela eternidade. Em um momento como este, propício ao desencarne. Com papéis de chocolate com laranja espalhadas no linóleo de tacos misturados a embalagens de camisinhas. Com guarda-chuva colorido para dias cinzentos. Prontos para uma mentira. De Marte ao Inferno. Com a habitual feiúra. Com a contumaz certeza da convivência. Intensa. Confusa. Com seus olhos se abrindo e se estreitando. Sem o primeiro beijo matinal, sem o aninho em meu peito. Apenas olhos estreitos com mágoa escalavrada. Com o teto marrom ondulando. Com um brilho teimoso de uma fresta na madeira. Sinalizando que nem tudo pode (e deve) estar perdido. Sinalizando uma saída. Não boa, nem ruim. Necessária. O azul tímido num rosto antes afogueado. As dúvidas dançando feito Fertility e Trevor no navio que afunda. Mas sem sabermos se de fato afundará. Embora já estejamos com nossos botes. Prontos para partirmos nossos corações, como canta a música. Novamente. Ad infinitum. Amo você, mas não sei como dizer. Nem sei se é isso mesmo. Mas parece. Deve ser. Não suporto não sermos mais. Talvez sejamos. Talvez não. Adormeçamos. Porque isso talvez seja um pesadelo. Ou talvez seja mais um talvez dentre tantas (in)certezas. Esperemos.

Alkaline Trio - Blue in the Face

17/10/2011 - 10h21m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 17/10/2011
Reeditado em 17/10/2011
Código do texto: T3281782
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