Carta de um Missionário

Como vai, meu velho amigo ???

A saudade é muita e espero que esteja tudo em paz e tranqüilidade contigo.

Já estou aqui há quase dois anos e já posso dizer que aprendi muito desde então.

Gostaria de receber notícias de nossa terra natal com mais freqüência, assim como gostaria de enviar mais notícias.

Mas você sabe bem como as condições de comunicação daqui são precárias.

Sempre me lembro de nossa infância, das nossas amizades aí na cidade, do nosso tempo de estudo no seminário ... ah, como é bom lembrar daqueles tempos saudosos !!!

Nada me deixa mais feliz do que recordar das pessoas importantes que sempre me deram forças e apoio ao longo de minha jornada.

Você sabe bem como eu sempre sonhei em formar-me como missionário, para um dia desbravar a Amazônia com intuito de ajudar as comunidades carentes que vivem isoladas das grandes cidades.

Eu me preparei muito para isso, e felizmente pude realizar esse sonho de cumprir o papel de um missionário de Deus, para usar minha vida para servir aos povos mais distantes e isolados de nosso país.

Nosso Senhor tem me dado forças e a cada dia tenho sentido suas misericórdias para superar as tentações.

Entretanto, estou escrevendo também para desabafar um pouco, para abrir meu coração para você. Sei que posso confiar em ti, meu amigo, para lhe dizer a angústia que sinto aqui nesse lugar.

Desde minha juventude sempre nutri o desejo de ser útil, de levar um exemplo de vida para outras pessoas bem diferentes da minha realidade.

Eu sempre desejei ser um instrumento de Deus para ajudar meu próximo, dedicando amor, compaixão, afeto, tratando os mais necessitados com paciência e perseverança.

O que eu mais queria era me espelhar no Apóstolo Paulo de Tarso para levar o modo de vida cristã para povos isolados da floresta.

Mas, por outro lado sinto um aperto enorme no peito ao estar aqui. As vezes sinto que meu tempo aqui é totalmente vão, como se não valesse a pena o sacrifício de ajudar essas pessoas.

Tem dias que acordo com uma revolta muita grande. A impressão que tenho é que essa gente não tem vontade de melhorar de vida, de superar a pobreza e as dificuldades que eles passam com tanta penúria. Tem momentos que chego a pensar que eles gostam de sofrer.

Deus me perdoe por isso, mas tem sido freqüente essa idéia.

Vejo que eles não se importam com muitos dos princípios que tento lhes transmitir. Eles não respeitam as regras, jogam lixo em qualquer lugar, não tem cuidados com os equipamentos e materiais que recebem, não se importam com o futuro ... quase sempre só se preocupam em beber e festejar.

As mulheres não têm um pingo de decência. Elas se relacionam com qualquer um, sem se preocupar com seu futuro. Não valorizam seus corpos, pois do jeito que agem passam uma imagem de um objeto sem valor.

Não gostam de estudar, nem se preocupam com os livros e revistas que doamos a eles. É até difícil de acreditar, mas quando damos as costas eles pegam os livros e materiais pedagógicos e colocam tudo na fogueira para assar uma tartaruga ou uma caça qualquer.

Parece algo irracional, mas eles nunca pensam no dia de amanhã, pois só querem viver o momento, gastar o que tem na hora, sem se preocupar em guardar algo para os momentos de dificuldades.

Eles sorriem demais, falam bastante, gostam de se aproximar dos visitantes e no primeiro momento se mostram aparentemente felizes, mas logo que a panela esvazia e a bebida acaba voltam pra realidade sofrida, sem escolas, sem postos de saúde, sem asfalto e energia elétrica.

Há centenas de famílias aqui que vivem em condições precárias, com residências sem saneamento, sem qualidade de vida, uma vida extremamente pobre.

É triste ter que admitir que eles muitas vezes nem dão conta que nós estamos aqui para ajudar, para lhes mostrar um caminho melhor para viver.

Tem vezes que nos tratam como se fossemos idiotas ou pessoas bobas que estão aqui somente para sermos passados pra trás e ludibriados por eles.

Você pode nem acreditar, mas toda vez que saio de casa eu preciso trancar minhas coisas num baú e até mesmo a comida de minha despensa precisa ficar trancada num armário com trancas fortes, pois já fui lesado inúmeras vezes.

É doído saber que dediquei boa parte de minha vida me preparando para ajudar essa gente e depois de tanto esforço ter a impressão que esse meu sonho não vai ser bem-sucedido.

Desculpe pelo desabafo, meu amigo, contudo, eu precisava externar com alguém as minhas angústias.

Peço que continue orando por mim, para que Deus me dê forças para suportar com paciência esse período. E, peça também para que em breve eu possa ir para um lugar melhor.

A paz de Cristo ...

Tefé - AM, 09 de setembro de 2011.

João dos Santos

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Ilha de Marajó – PA, Setembro de 2011.

Giovanni Salera Júnior

E-mail: salerajunior@yahoo.com.br

Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/9410800331827187

Maiores informações em: http://recantodasletras.com.br/autores/salerajunior

Giovanni Salera Júnior
Enviado por Giovanni Salera Júnior em 16/09/2011
Reeditado em 17/01/2012
Código do texto: T3223921