À Rainha do Silêncio Abençoado

Abracei a mochila pensando que era você...

(...)

Hoje vi o sol nascendo dentro de uma gota de orvalho dependurada na altura dos meus olhos. Achei inspirador, poético, reconfortante, piegas e até mesmo pederasta. Mas, ah!, como eu preferi ainda estar sob o teto marrom com a luz amarelada do abajur formando desenhos com as sombras dos troços pendurados no carrinho do bebê; essas sombras catalisadoras de devaneios insólitos às quatro da manhã.

- Como será a última visão de um moribundo?

- Como assim?

- Você fecha os olhos e sabe a última coisa que viu e sabe que, ao abri-los, pouco mudará na paisagem...

- Hum...

- Agora, imagina como é fechar os olhos pela última vez... Como será isso?

Aí você encosta mais, inspira no pé do meu ouvido, roça o rosto na minha barba, beija meu rosto, coloca a perna sobre minha barriga e me abraça forte, como se eu fosse a sua mochila, seu protetor, seu sustentáculo existencial, seu homem, seu melhor momento, seu segundo melhor sentimento, a última alvorada em seu semblante.

Quisera eu ter quisto que você fosse a minha última visão, a testemunha do meu último bocejo, a receptora da minha derradeira exalada de gás carbônico... O partir brando, sereno, em paz; tão em paz quanto uma criança dormindo profundamente, mas não, não quis, mesmo querendo não quis, pois a minha gana pelo conhecimento do que nos aguarda é tão mais forte quanto o desejo dessa catalepsia idílica em seus braços.

Como há de ser, o despertador toca. O prenuncio de um dia miserável, enfadonho, preenchido por sonhos sem substância e de problemas alheios e pensamentos adiados por semáforos abertos e portas fechadas. O galo do vizinho canta e os fantasmas trazidos pelo vento frio da manhã fustigam nossos pés e eriçam os poucos pêlos dos nossos corpos.

Mais sete minutos antes que comece a tormenta, a sucessiva e desvalorizada corrida do ouro de tolo. Tento me levantar mas sou puxado: a última peça do quebra-cabeça de duas peças que é o “nós” se encaixando; a amálgama de quadris e pernas e pélvis e cóccix e cabelos e respirações e sonhos e sono, enquanto o mundo cruel ruge lá fora, o balido do carneiro do diabo tem suas facetas mostradas nos trilhos dos trens e vacas regurgitam a metafísica e expandem o buraco da camada de ozônio e o Viver aniquilador do sentido da vida bate nas janelas da alma via cartão de crédito, cinco estrelas, maçã mordida, dreadlocks em tardes de dias úteis do devir que não tarda em vir.

Restam só mais 6 minutos de confissões nauseabundas de transgressões da subserviência salarial em troca de mais do que os 6 minutos restantes: 1 de sono profundo; 1 de tranqüilidade plena; 1 desta coisa estranha e descabida e imorredoura que é-e-não-é-amor e 1 de dúvida, para que a nossa inteligência se mantenha imaculada nos questionamentos e não seja eclipsada com falsas e precipitadas certezas de um sempre de borboleta e os 2 restantes que eu trouxe à tona todas as horas sob o teto marrom para te escrever isso, com toda a arrebatadora e represada força do meu maldito silêncio quando tudo o que ambos precisamos – para começarmos a nortear nossos rumos - é de um pronunciamento meu .

Tenho fome de você sede de você sono com você.

(...)

O meu silêncio...

Lou Barlow - Home

09/05/2011 - 05h55m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 12/06/2011
Código do texto: T3030502
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