Carta de Desamor

Andei por trincheiras. Acendi cigarros de mendigos. Observei todos os meus pedidos de carona sendo declinados. Dormi sob viadutos. Desci ladeiras dentro de um orelhão. Acendi fogueiras com mendigos e dividimos batatas assadas. Defequei em arbustos em bairros nobres. Trinquei o pulso rolando em tambores. Miríades de cores, dezenas de odores, centenas de sabores. Barricadas, campos de soja, árvores com corações talhados no tronco. Amor, meu amor. Girassóis escalpelados por crianças curiosas, cachorros ganindo após serem atropelados e gatos empinando o rabo e se esfregando em portões enferrujados. Dormi algumas noites na cadeia. Presenciei um suicídio com cadarços. Lancei cocktails molotovs (?) no transporte público. Empurrei carrinhos de supermercados com um pacote de bolacha dentro. Dancei valsa com cabos de vassoura. Fiapinhos de fibra de vidro coçaram feito o diabo dentro da minha pele. Apicultura: já li muito sobre. Poemas: já escrevi muitos deles. Amores: já vi muitos dos meus resvalarem para o nada. Desamores: peça constante no quebra-cabeça da minha existência. Música: seus dedos tamborilando Dear Cinnamon Tea no espaldar da cama. Lugar: nosso antigo quarto, luzes dos carros bruxuleando no teto, voz do Jô Soares ao longe na televisão, dezenas de cobertores e os brinquedos do McLanche Feliz espalhados pelo chão de tacos da casa. Um toque: o dos meus dedos pressionando seus mamilos assim que acordo; prendê-los entre o polegar e o indicador e me sentir feliz com a ponta dos dedos na ponta de um mamilo. Um dia: aquele que sem mencionar palavra, você segurou minhas mãos em uma famigerada esquina em uma tarde de inverno e depois me abraçou ternamente, me protegendo do frio, das pessoas, do mundo e de mim mesmo. Uma conversa: aquela em que você me chamou de autista quando sentei no canto da sala e abracei os joelhos e fiquei olhando pro nada para logo em seguida te fazer chorar ao falar exatamente tudo o que você sentia e não sentia e encerrar o transe, a catarse, a verve, o autismo, com um "você não merece lamber o chão que eu piso; tem que escovar bem com Diabo Verde essa sua língua para, então, lambê-lo". Uma música: Ignore List. Uma música sendo tocada ao vivo: Ignore List na Praça Silvio Romero. Dia que você não existia, dia que eu não existia, dia em que os dias não eram somente esse amontoado de prós e contras; eram apenas horas sem relógio preenchidas pelo passar do tempo. Pulei da Ponte da Amizade, pisei em rolas-bostas que rolavam bostas de cavalo magriça de cocheiro fedorento. Já calcei o sapatinho de cristal nos pés da madrasta. Já vendi minha poesia por dez centavos a folha na rua. Já desentupi encanamentos, já ejaculei dentro de ralos, já jantei pão embolorado em quartos de hotéis pulguentos ao lado de baratas copulantes. Pode me chamar de estúpido, louco, senil, pueril, fracassado, gostoso, otário, imbecil, cafajeste. Pode falar o que você quiser de mim, amor, conquanto sua voz continue derramando açúcares em meus tímpanos; sim, expurgue tudo o que pensa sobre mim. Mesmo que suas palavras me acertem como golpes de boxeador. Mesmo que suas palavras sejam pústulas latejantes dentro de minh'alma. Eu agüento. Eu suporto. Expurgue e, quando já estiver cândida novamente, deixe que eu a envolva com o meu abraço. Pois não há experiência pela qual eu já não tenha passado que consiga me dar a felicidade plena e a tristeza profunda que é a de tê-la em meus braços. Agora a chuva cai. Não há abraço. Não há você. Há essa cama. E há esse travesseiro, carregado com as quimeras do que não pode ser. Do que não pode vir-a-ser.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/03/2011
Reeditado em 07/03/2011
Código do texto: T2832806
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