Reajuste

"Ama-se por fim os seus desejos, e não o desejado." - Nietzsche

Quando você vai pedir demissão de um trabalho ou requerer o cancelamento de um plano de saúde, tem que fazer uma carta de próprio punho explicando seus motivos. Quais os motivos para pedir demissão ou cancelar um contrato de plano de saúde? Um emprego novo ou um plano de saúde melhor. Um emprego menos desgraçado e um plano de saúde mais barato. Não sei, nunca fiz nenhuma das duas coisas, mas elas estão na minha cabeça neste peculiar momento.

Quero pedir demissão de você, que faz mal para a minha saúde e por que eu faço mal para a sua saúde, também. Com as minhas oscilações de humor, com as minhas oscilações de libido, com meu descaso, com as minhas demonstrações públicas de afeto para logo em seguida andar na sua frente como se não te conhecesse. Às vezes penso que amo você, às vezes penso que te odeio. Você não dá motivos, fica em silêncio, aceita o que falo de bom grado, como se estivesse tudo bem e então fico sabendo por intermédio de outros que você não está bem, que está de saco cheio de mim e duzentas vezes por dia pensa em me matar.

Não te culpo. Tampouco a mim mesmo. Estamos sujeitos a esses contratempos. Você diz que precisamos conversar, mas não fala nada que se aproveite. Você promete que vai me encontrar e desaparece. Eu já não tenho mais interesse no que você pensa ou sente, por que eu já não sei mais se penso ou sinto; estou mergulhado na frieza do meu eu e pouco importa o calor que o que está no exterior do meu corpo pode oferecer.

Vejo que o melhor é cada um seguir seu próprio caminho. Só e só. Só. Não precisamos conversar para terminar o que começou sem conversa. Não precisamos fazer uma espécie de carta de próprio punho para romper um contrato que não foi assinado. Não precisamos detalhar motivos do mútuo embotamento porque eles são irrelevantes; eu não me importo com você e você não se importa comigo. Essa é a real.

Os beijos não existem, as ligações são desmotivadoras, os abraços são gélidos, o contato manual causa leve repulsa. Diga-me, me apresente um motivo para continuarmos nessa aflição?

Fomos boa companhia um para o outro, isto é fato, também. Não precisamos ser tão radicais e romper o contato de tal forma. Podemos tentar ser amigos, não podemos? Não, nós não somos amigos - ainda não. Estávamos ocupados demais amando o holograma mental do outro e sugando nossos corpos que, no final das contas, eu não sei nada sobre você e vice-versa. Isso não é amizade.

É válida a atração física na amizade. Amigos transam, vejo com freqüência, ouço com freqüência e sim, claro, já vivi isso. Às vezes é inevitável não sair pra ver um filme, tomar um café e não acabar um nos braços do outro. Mas não há beijo, já reparou? Só o primeiro, depois é corpo - e conversa no pós, muita conversa no pós.

Amigos que transam falam, nus, um dentro do outro, de suas outras relações, de seus medos com seus companheiros, de seus planos. Choram debruçados um no peito do outro, tanto de alegria como de tristeza. Não há cobrança e não há ósculo, a harmonia reina, não há nojo, não há conta conjunta e nem frustração. Com a roupa já no corpo, volta-se a amizade. Volta-se para os outros corpos, para a própria vida.

É isso o que eu quero: voltar para a minha própria vida. Não nasci, infelizmente, para ficar atrelado à outra pessoa, sempre nutrindo expectativas que não posso suprir, apenas suprimir, despetalar, deflorar, etc.

Sei que você vai me entender. Eu demorei para entender. Há um bom tempo estamos na mesma sintonia e estávamos tentando salvar o que construímos. Acontece que alguém tem que fazer alguma coisa, tomar alguma atitude, e minha atitude foi tomada e, de coração, espero que eu esteja certo nela.

E uma coisa que você me falou não sai da minha cabeça: que vou findar como Hemingway ou como Woolf.

Talvez você tenha razão.

Atenciosamente,

R.

Ouvindo: She Wants Revenge - Replacement

http://www.fotolog.com.br/therapyrevenge/65233723

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 24/10/2010
Código do texto: T2575937
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.