MEMÓRIAS DE TIDULA -2-

Chácara Santa Fé, 06 de fevereiro de 2003

Querida Diadorim,
minha amada companheira,

O vento do norte soprou a figueira do meu portão, e
aquele figo que era todo verde por fora partiu-se em
duas faces na cor vinho. Seu suco natural e doce
gotejou sobre suas notícias ainda quentes na ânsia pelo
milagre do vinho .
Calcula você que, a mentira empacada encolheu-se no velho e grosso casco do meu cavalo, para dar beira às
suas notícias bem embaladas no papel do pão da vida.
Senti-me renascer, acredite!
Chorei ao pensar que o meu mais rico sol está a
beira do porto - tal qual Joana, a rainha louca -
levando felicidade aos homens. E o desejo por estar aí
colhendo em meu velho embornal todas as suas histórias, é excitante e longo como o sangue que arrelia as minhas veias. Do mais, o real existe: auto- confesso -me só e triste.
Diadorim prima querida, é tempo de carnaval,
quero aproveitar esses dias para adoçar a minha
espiritualidade com o suco da paz, quem sabe assim as
crianças poderão alimentar-se do leite gordo e forte da
matriz. Lá, tudo é de primeira, a começar pela coroa de
louros que o presidente usa. Sua faixa também é de
louros, mas ninguém a vê porque a bandeira vermelha a
protege. Também, quem não queria deixar a velha cuia na mata e beber água cristalina na concha de marfim? O
elefante não se sentiria ultrajado, mas a dor da sua
memória não apagaria em tempo algum.
Diadorim maninha primogênita, Diva´s continua sempre na defensiva fermentando ainda mais seu conflito sexual. Sem resposta para o natural da vida, ela diz ser opção. Seria opção ou condição de vida? Não sei, só sei que Diva´s existe, e isso é o que importa. Assim deveriam
pensar todas as mães. Mas quem não pensa nodoa o corpo e talha a alma. E a alma há de ser regada com
o néctar do amor para soprar a aflição dos filhos. Filhos que procuram o desvio de glândulas sob a tensão da pressão social. Isso é discriminação, coisa feia, doída e pobre como a fome. E Louise já disse ao padre Durval: “com minha prole ninguém bole“.
Diadorim mamãe querida, mais uma vez confesso-lhe o secreto desprezo que tenho pela multidão, pela solidão e pela felicidade. A multidão me angustia às vezes. A felicidade é curta e doce como uma gota do favo de mel na boca da criança manhosa, e a solidão me padece. Diga-me onde está o equilíbrio, mãe? Paralelo é meio? Tempo existe? O tempo vem de um passado adicionado a um futuro que é celebrado no presente? Então o tempo é eterno? O eterno sem memória é curto, e, diga que não?! Estou confuso ou confusa? Não sei, só sei que o importante é, em tempo existir. Existir sem tempo. E creia, consigo existir e digerir o tempo. Nele escalei até o mirante do mundo, e de lá te espio me acariciando em seu ventre. Calo-me emocionado, mas não choro, sou Tidula, sou forte e tinhoso como o touro do Bento. E por falar em Bento mãe, ele pediu para que eu escrevesse à Diadorim do Bandolim, que em sinal de penitencia montou-se em carne viva no lombo do camelo empoado. Ela criou uma culpa que não é dela, é da vida, do tempo ou dos seus antepassados. Eles não regaram a rosa rechonchuda e a colheita caiu pesada como uma pedra milenar naquele poço. Diadorim fica ali, espiando o suco amargo das suas raízes. Pobre menina!
Diadorim fiel companheira, estou amarrando as minhas botas porque a tempestade está chegando, e com ela vem a esperança. Dela sim, eu gosto. A esperança é demorada, estratégica e desafiadora. E nela deposito os meus propósitos. Então minha querida, segure as rédeas
porque nós seremos os signos renovadores dos neurônios esquecidos. Até lá, estaremos a sete palmos do alicerce da nossa obra. E isso não importa! O importante é que todos verão suas histórias talhadas na biblioteca do Porto. E ali, já terei depositado em humilde alegria as memórias que hoje não comportam mais dentro do meu velho chapéu.
Agora tenho que pousar para Rita. Não quero me
impor ou brigar com ela. Ensino-a com meu comportamento e não com palavras. "Palavras nada significam em parte alguma" Assim falou o escritor espanhol Fernando Rojas, há quase 500 anos. E é por essas singularidades que Danilo fica me chamando atenção. Não gosto de ser observado, ou observada. Que seja: a vida é mesmo assim!
Quero mais notícias sobre sua flexibilidade na lida
com os homens, enfim, não me deixe só, escreva-me.
Um saudoso abraço,
do sempre seu,
Tidula.
(Por Lúcia Borges).

Retorno a Titula (pela Mestra: Jaqueline Britto Sant´Anna,) Obrigada maninha Jaque, te amo.

Beira-do- Poço, 17 de maio de 2008.

Tidula, querido!

Há tempos não te mando notícias, nem ouço sua voz trazida a galope para meu coração. Tens recebido os fios de meus cabelos que enviei?
Durante todos esses anos emudeci de doença, febre e cansaço. Meus cabelos caíram molemente durante o que chamei de “meu outono de vida”. Acarinhava cada fio com as pontinhas dos meus dedos magros, beijava-os por horas com o pensamento fixo em seus olhos cinzentos e vivos. Guardava os fios até a próxima tempestade de vento e areia quando os soltava endereçando-os a você. Depois ficava amortecida de tanto rir daquela cabeleira a voar pelo deserto em sua direção. Divertia-me a imaginar como você receberia tão enlouquecida correspondência em sua varanda. Com certeza seu cachimbo em brasa rolaria pelo seu peito tamanha surpresa.
Ah, meu amado, agora que me voltou a voz e a vontade de renascer, tenho tanto para te contar sobre esses anos que é melhor você reacender a brasa do cachimbo, chamar o velho cão Trabuco para se deitar aos seus pés.
Bem, você sabe como sou fraca para sentimentos. Mas desta vez não foi culpa de nenhum outro desalmado que me possuiu sem desejo. Ao contrário, este forasteiro chegou de alma sedenta à beira de meu poço e eu, desprevenida, cismei de procurar luz em seus olhos e acabei permitindo que cantasse para mim as músicas de seu povo cigano do norte.
Nunca meu corpo se sentiu assim úmido e envolto em nuvens perfumadas. Amor me picou, Tidula! Caí em sono e sonho por meses com esse homem cuja alma tocava a minha com tal doçura que todas as partes do meu corpo já lhe pertenciam.
Ah, Tidula, meu amor, o que há de errado no amor entre os anjos ou mesmo entre as feras? Até hoje não sei, mas espero que daí, do alto de sua colina, você possa ver e avaliar o desenrolar dessas coisas por esse mundo desgrenhado.
Lembra quando assistíamos ao nascimento do amor que brotava de dentro da Rosa Rechonchuda? Ríamos de felicidade e achávamos que era o conserto do mundo. Como éramos ingênuos, não? Ainda guardo em meus lábios as palavras daquele momento. Elas cicatrizaram todas as feridas em meu outono. O que você fez com as suas palavras sorvidas gole a gole da nossa Rosa Rechonchuda? O que você fez com nosso baú de relíquias de infância? Aquele prateado e forrado por dentro de macio veludo vermelho onde, certa vez, ao procurarmos um de nossos beijos perdidos, encontramos a nossa Rosa Rechonchuda.
Como essa lembrança me faz chorar. Mas não menos que o pranto que derramei todos esses anos para encher o meu rico poço quando meu amado cigano se foi. Sequer consigo pronunciar o nome dele sem sangrar meus lábios de tanto sal.
Fale-me com franqueza, Tidula amado, será que pequei em me deixar levar por esse deserto, montada em seu camelo como sua escrava? Você deve estar se perguntando como consegui retornar ao meu rico poço.
Pois bem, ao findar dos dias de amor cego e doce eu não tinha mais beleza para saciar a alma daquele homem. Ele me trouxe de volta e me depositou à beira do poço, como quem devolve uma ave caída ao seu ninho. Encheu seu cantil, deu água a seu camelo e partiu desabalado por entre essas dunas. Passará por aí amanhã de manhã para te deixar a criança que geramos. É uma linda menina-moça e se chama Alice. Cuide dela, como se fosse de mim. Ela carrega sempre um gato numa cesta que sorri por tudo e por nada. Já não tenho forças mais para cuidar de outro ser, mal cuido de mim e meu rico poço está rachado. As caravanas que aqui chegam para beber minhas histórias reclamam que não sou mais coerente e me surram ou apedrejam, depois cospem em minha face.
Mas nada disso me atormenta. Vou podando o musgo das paredes do meu poço e faz tempo que não vejo meu próprio rosto, então me julgo morta. Não sei mais onde estão o início, o meio e o fim de nossa rica história de família. Nem mais sei se sou ainda uma mulher porque, ainda ontem à noite, notei em mim uma cauda semelhante a de um lagarto e passei o dia a me aquecer ao sol.
Preciso parar por aqui, meu amado pai, porque vejo ao longe uma nuvem de poeira que se aproxima e não sei se é caravana ou tempestade. De qualquer forma, preciso me aprontar e não sei onde coloquei meu véu. Aquele negro que você me deu quando Adélia se foi.
Desculpe-me se te escrevo assim nessa nuvem. Não é por ingratidão, não. É pressa de viver mesmo.

Adeus!
Diadorimrosa.

 

Chácara Santa Fé 18 de maio de 2008
Sempre amada Diadorim!
Um redemoinho de nuvens trouxe sua carta até o meu jardim. As flores ficaram apaixonadas por sua linguagem que declama a  prosa e seus alheios em tempos críveis e incríveis. E eu? Eu que dê há muito não chorava, chorei. Chorei num suspiro de alegria por conta de sua colheita. Revivi o dia em que te enviei a semente do amor que extraí da rosa rechonchuda. Lembra-se? Você retrucou dizendo que acreditava somente no que procedia do suor do seu camelo.  Ah, minha pequena, o amor está acima da luta, do pecado e da travessura. E por falar em travessura Aurélio me disse que maldade é sinônimo de travessura. Não creio, enfim, quem sou eu para contestá-lo?
Pergunta-me sobre o nosso baú de relíquias de infância? Ele está no sóton desse casarão velho e ruidoso.  Às vezes penso que há alguém aqui me espiando Diadorim. Pisiu, escute! Agora mesmo ouvi um dó menor saído do piano da tia Elvira. Acho que ela não ganhou a paz porque seu filho arremessou seu próprio sangue pela janela. Imagine se tal perversidade se trata somente de travessura. Ah Aurélio, você não perde por me esperar!
Diadorim querida, ontem mesmo tentei abrir o nosso baú, estava todo empoado, ainda assim consegui bispar a cartilha que nossa madrinha nos deu naquele dia em que descobri ser seu avô. Serei seu avô? Isso não me importa. O essencial é permanecermos juntos no tempo, e em tempo. E ademais, já percebemos que a cartilha é um registro do nosso saber no encarrilhar de letrinhas enigmáticas e coloridas. E como compensação final nós ganhamos a velocidade ao ponto de alcançarmos o ano luz. E você querida Diadorim, provida de mais fôlego, continuou na mira dele. Eu me rendi à cegueira por não suportar a celeridade da sua imensa luz. Quem me guia hoje são os últimos dos discípulos de Kabbalah através do Zohar.  Foi essa a forma que encontrei de alcançar a maturidade do meu ser.
Diadorim minha amada mãe, onde você está? Saudade de você me acariciando. Saudade do seu amor. Saudade do seu zelo ao me preparar aquele caneco de leite quente com paçoca para me aquecer da frieza dessa terra. Continuo com sua frase tatuada em meu coração:
“um dia nos encontraremos por entre as nuvens da claridade do céu”. E o meu alento para entender a vida sem você é a certeza de que seus braços incansáveis naturalmente continuarão a ninar as crianças desse infinito berçário. Mas de onde você estiver saiba que continuo forte como o touro do Bento, valente como o nosso indiozinho Caíque e devoto dos preceitos do Criador como um fiel discípulo a espera daquele que sair por ultimo. Daí sim, poderão apagar a luz e fechar a porta. Sim, não me esquecerei de regar a rosa rechonchuda que adormece no quarto. Seus conselhos minha mãe, serão sempre mandamentos.
Diadorim minha filha, não se preocupe com sua cria. Seu zelo fez com que ela chegasse pronta. A pequena já pensa em visitar as bibliotecas da região e nela depositar com orgulho a sua luta diária e renhida para decifrar a esfinge da beira desse  poço. Nesse momento ela declama ao gato - que carinhosamente o chama por Bigode - aquele seu poema “Fruto do Tibet”. Pobre menina, seu único dilema é o conflito que trás consigo em relação aos grilhões religiosos que escravizam o nosso ser. Enquanto isso, Pércio se embala na rede a espera do meu cochilo para atear fogo nas minhas
correspondências. É por isso que meus olhos são pesados e alienados. Não tenho dormido. Fico aqui velando seus escritos para a preservação da geração vindoura.
Diadorim maninha caçula, vou encerrar esta carta porque o carteiro continua nem tão suado, mas sem tempo. E eu preciso te mandar o pão da vida porque o vinho sei que já seguiu na ultima carruagem. Não se preocupe se ele demorar a chegar porque o vinho antigo é o remédio acertado para calar sua febre e serenar essa sua pressa de viver.
Fique então com minha benção e saudade.
... E não se preocupe com Adélia pois hoje, ela recita sua canção para ninar os anjos rebeldes.
Sempre seu,
Tidula.
(Por Lúcia Borges, esperando retorno, Jaque.).
Lúcia Borges
Enviado por Lúcia Borges em 30/05/2009
Reeditado em 14/02/2016
Código do texto: T1623245
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