CONTERRÂNEO COMO O PAI

Este texto é seqÜência do texto. COMO CÃO ATROPELADO.

Segui rumo ao sul, tendo um imenso bananal como parede em ambos os lados do caminho. A dor em meu braço deslocado aumentava a medida que o tempo se distanciava do instante em que o caminhão tinha me atropelado. Imaginava que não podia deixá-lo cura-se sem algum remédio e sem pô-lo no lugar ou verificar se não tinha quebrado em algum ponto. Mas o que fazer, se não sabia de algum posto do INPS por perto, embora que levasse comigo a carteirinha com a qual poderia consultar a um médico, tudo parecia fora de alcance.

Em meio ao imenso bananal avistai uma casa de madeira e barro, há distância de uns duzentos metros fora da rodovia. Dirigi-me a ela pensando que as pessoas ali pudessem ter algum remédio caseiro com que “afumentar”* meu braço para aliviar a dor. Chegando perto, veio me receber no terreiro uma mulher jovem assustada, trajando avental e lenço na cabeça, calçando umas tamancas igualmente envelhecidas. Sem me olhar nos olhos, mas vendo meu braço inchado, ela atendeu meu pedido trazendo de dentro da casa uma garrafa de vidro transparente contendo ervas com cachaça, o que identifiquei como sendo o que tratamos no Rio Grande do Sul de “arnica”. Sabedor de que era um bom remédio para contusões, passei no braço friccionando bastante, como sempre vira os avós e pais fazendo quando morávamos na chácara e vivíamos contundidos. Depois me fui de retorno à estrada, seguindo meu caminho em direção ao sul.

O dia tinha clareado um pouco mais, mas seguia cinzento e umedecido por uma garoa persistente. Mais adiante, após findo o trecho do extenso bananal, vi na beira da rodovia um bar meio que de pau a pique, onde havia uma senhora atrás do balcão atendendo a um senhor do lado de cá. Cheguei para ver se não teria um remédio para meu braço, pois ainda doía muito. Vendo o inchaço e o rubor do braço, essa senhora também fez “afumentação”* com arnica, me dando depois um café preto com pão com margarina e um “dinheirinho para eu tomar um cafezinho mais tarde”, como disse.

Segui dali rumo ao sul e o dia foi ficando mais claro, aparecendo o sol de vez em quando. O movimento na rodovia foi tornando-se intenso, como era mais intenso sempre que se aproximava o horário do almoço. Vendo as placas que anunciavam um posto de combustíveis e restaurante logo a frente, fui planejando que tomaria um café preto com um bolo inglês usando o dinheiro que a senhora do bar tinha me dado quilômetros antes.

Ao lado esquerdo de um grande posto a direita da rodovia, ao fundo de um pátio aberto com muitos caminhões estacionados, cheguei num restaurante igualmente grande, cujo balcão cercava um grande quadrado e o balcão era cercado por muitas mesas em ambos os lados. A procura de um lugar discreto, pois ia fazer uma refeição tão inadequada para hora, fui para o lado esquerdo do balcão, que me pareceu bem menos movimentado, pensando em assentar-me ao fundo e fazer minha refeição pobre sem grandes importunos. Chegando-me ao fundo do restaurante, surpreso vi o hippie que já tinha visto dias atrás. Ele me lembrava a segunda carona que eu tinha conseguido desde que saíra de São Paulo, havia umas duas semanas, após a Segunda metade do mês de janeiro do ano de 1981. Antes de conseguir a carona com a ajuda de um policial rodoviário, que a pediu a um baiano que transportava dois caminhões, eu observava encantado o trabalho habilidoso desse hippie a fazer bijuterias.

E eu que tinha pensado que nunca mais o veria. Todavia, lá estava ele, sentado num banco encostado à parede do fundo do restaurante, junto ao balcão, trazendo consigo suas bugigangas, tendo sobre o nariz aqueles mesmos óculos escuros redondos, como os do John Lennon. Cheguei-me a ele pensando que não me reconheceria, mas me reconheceu, ao menos para me cumprimentar. Depois se calou e seguiu tomando seu café. Envergonhado, por causa da refeição miserável que eu ia fazer de almoço, recuei uns dois bancos para a saída. Então pedi um café desses que é servido num copo de fundo grosso, onde se serve água ardente, que os bebedores no Rio Grande chamam de martelo, e um bolo inglês, que antes eu tinha conferido que era possível pagar com a importância que eu trazia no bolso.

Comia meu bolo inglês acompanhado de café preto quando notei chegar à frente do restaurante uma Brasília amarela cheia de faqueiros sobre a tampa do motor na traseira. Ela parou após fazer um cavalo-de-pau e do veículo desembarcaram quatro rapazes que entraram no restaurante mexendo alegremente com os atendentes, indo aperitivar nos bancos ao lado direito de onde eu estava. Envergonhado, escondi o bolo rapidamente, para que não vissem o que eu almoçava. Eles falavam alto e riam bastante, quando o rapaz que ficou a minha direita perguntou de onde eu tinha vindo e o que fazia ali. Disse-lhe que tinha saído da casa de meu pai em São Leopoldo desde a metade do mês de novembro último, indo até São Paulo, e agora retornava para casa. Meio espalhafatoso, ele me abraçou e apresentou-me aos colegas como um seu conterrâneo muito querido, dizendo que também era de São Leopoldo e estava muito feliz de ter encontrado um outro leopoldense tão distante. Perguntou se eu já tinha almoçado. Disse-lhe que sim e que só estava tomando o cafezinho de depois do almoço. Ele disse que não parecia que eu tivesse almoçado, senão não estaria comendo um bolo inglês, que ele tinha visto eu esconder. Então me convidou para almoçar juntamente com ele e os colegas de trabalho, que já se postavam a uma mesa perto da entrada do restaurante. Insisti que já tinha almoçado, mas ele protestou dizendo em voz alta que não ia deixar nenhum leopoldense sem comer distante de São Leopoldo. Pensando logo que não deveria desdenhar por muito tempo a sorte, fui para a mesa e aproveitei a farta refeição que eles me pagaram.

Wilson Amaral

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 19/10/2007
Reeditado em 19/10/2007
Código do texto: T700991