"Atraso de nascença"

Viver em uma época e sentir que chegou atrasada ao mundo é estranho. Gosto de conversar com pessoas mais velhas do que eu e, hoje, tenho 32 anos de idade. Os filmes de época me são emocionantes por retratar o amor, a dor e os dramas da vida com mais veracidade. O vestuário feminino sugeria uma sutil sensualidade com os longos vestidos e corpetes que faziam as mulheres pararem de respirar para manterem as silhuetas. As músicas anos 60, 70 e 80 me causam saudade de momentos que nem vivi. É como se eu tivesse dançado o som de Elvis Presley e usado saia rodada de bolinhas vermelhas.

Me sinto desconfortável neste lugar conturbado por avanços tecnológicos em que as pessoas não se tocam mais. Recebi um abraço de uma amiga pela tela do celular: era um urso amarelo de braços abertos que tomava conta de toda a tela do pequeno aparelho. Os computadores parecem bichos de sete cabeças! Outro dia tentei baixar um livro em meu notebook e o que consegui foi um vírus. Ora! Vírus era doença de gente e não de máquina. Em 2009, por exemplo, aconteceu uma endemia de um vírus da gripe chamado influenza A, matando muita gente.

Tudo se resolve por mensagens de e-mail ou ligações telefônicas. Quando criança escrevia cartas para minhas tias com desenhos de corações e dentro colocava: “Você é a tia mais querida!” Depois eu aguardava o carteiro chegar, ansiosa pela resposta.

Quando lembro da infância que tive, lamento pelas crianças de hoje. Eu jogava bola na rua e ouvia a molecada que jogava melhor do que eu dizer: “Pega essa bola perna de pau!” Era briga na certa. Depois de “bolar” no chão com o que debochou de mim, me levantava com a cara cheia de terra e cabelos blackpower. Eu soltava pipa, jogava betes, barata no ar e tantas outras brincadeiras que me deixavam tão suja de poeira e que tiravam o sossego de minha mãe. Hoje não tem poeira, não tem sol, não tem vento na cara. As crianças brincam com celulares, computadores e games, mas continuam tirando o sossego de suas mães.

E os namoros! Ah como deviam ser emocionantes! Pegar na mão do pretendente era ousado. Minha avó me contou que certa vez, quando ela era jovenzinha e namorava meu avô, depois de meses de namoro sem nem pegar nas mãos um do outro, ele disse:

“Querida, me dá um beijo?” Ela ficou constrangida com o pedido mas pensou rápido e respondeu: “Claro que sim! Bem atrás de você, nesta janela, tem um monte de beijos que se abriram pela manhã, pode escolher um!” E ela foi salva pela florzinha com nome de beijo. Hoje em dia parece não haver mais o romance e o friozinho na barriga de antes. Agora a moda é “pegar”.

Estou tão velha para os novos hábitos deste século. E estou tão jovem por não ter vivido as maravilhas do passado. Me vejo nos versos de Manuel de Barros: “Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença”.

Michele Valverde
Enviado por Michele Valverde em 01/09/2014
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