Infância em Maringá – na pensão.

Era uma pensão sem estrelas. Chamava-se, segundo o letreiro na porta, Garcia. “Pensão Garcia”. Estava instalada no entorno da rodoviária de Maringá. A Pensão Garcia recebia muitos cacheiros viajantes que se hospedavam ali por curtos períodos de tempo. Era o ano de 1972. Minha mãe trabalhava na cozinha da pensão Garcia. Eu engraxava sapatos na rodoviária. Minha mãe terminava o seu turno de trabalho por volta das nove horas da noite, de acordo com o tempo que ela levava para deixar a cozinha limpa. Como eu já sabia disso, sempre me encontrava com ela no horário combinado para irmos embora juntos. Nossa casa ficava há uns quinze minutos a pé.

Naquele dia nos desencontramos. Não me recordo se cheguei tarde ou se ela saiu mais cedo ou as duas coisas. O fato é que quando cheguei lá ela já tinha ido embora. Como era muito tarde, relativamente à minha idade e ao caminho escuro, por medo ou também por cansaço, pensei em não ir para casa e dormir num dos quartos da pensão que, de antemão, eu sabia, estavam na maioria sempre vazios.

Fui até a portaria da pensão, conversei com o porteiro..., em seguida ele me disse que não tinha quartos vazios. Achei inédito. Então, ele me sugeriu que fosse dormir no quarto de um dos empregados, Silas.

“O quarto dele tem duas camas?”

“Não”.

“Então onde vou dormir, no chão?”

“Pode ser, ou nos pés”.

“Vou prá casa”.

Fui. Até a metade do primeiro quarteirão. Quando bateu a escuridão e o silêncio da noite, e como minha mente naquela época vivia cheia de estórias de fantasmas, voltei correndo para a pensão. Na portaria perguntei aonde era o dito quarto do Silas. “Quarto número X”. Não lembro o número que ele disse. Lá fui eu. A porta estava trancada. Voltei para a portaria.

“Tem outra cópia da chave aqui”.

Peguei a cópia e fui de novo ao quarto. Abri a porta e entrei, em silêncio para não acordar o Silas e não ser posto para fora.

Hoje eu penso, como éramos ingênuos no referente a algumas preocupações vitais que temos nos dias atuais acerca de segurança face à maldade humana. Naqueles dias o mal já existia, claro, mas não nos deixava tão paranóicos. A ideia de que “só acontece com outros” tinha a sua força na proporção direta em que realmente só acontecia com os outros, quer dizer, não havia tanto crime, logo, eles não aconteciam por perto, não nos ameaçavam tão de perto. O risco não era iminente, logo, relaxávamos mais.

O Silas realmente estava lá, sob as cobertas. Enfronhei-me aos seus pés. Puxei uma ponta da coberta com cuidado. Me cobri pela metade mas já tava bom, era o suficiente para garantir uma noite de sono. Eram umas dez da noite?

No dia seguinte acordei por volta das sete horas, lembro bem. O Silas ainda dormia. Saí devagar e em silêncio do quarto, assim ele nem tomaria conhecimento da minha presença ali. Minha mãe ainda não tinha chegado. Então, atravessei a rua e fui trabalhar. Lá pelas oito e meia, senti fome e, portanto, falta da minha mãe. Falei com o meu chefe e ele me autorizou a ir tomar café. Minha mãe já devia ter chegado e, por isso, um copo de café com leite e um pão com manteiga era garantido.

Entrei na pensão Garcia pelo lado do restaurante – porque tinha o lado da portaria; eram duas portas de um mesmo prédio. A minha intenção era chamar a minha mãe para que ela viesse até o restaurante tirar o meu café. Quando entrei no restaurante, percebi que alguma coisa estranha, fora do corriqueiro, estava acontecendo. Observei que alguns empregados comentavam sobre o acontecimento que, de imediato, eu não captava. Cheguei mais perto, levantei as orelhas e em seguida ouvi algo parecido com:

“...O Silas morreu...ele era alcólatra...”

Prestei mais atenção. Era disso mesmo que se tratava. Mas, como, eu tinha dormido ao lado dele?! Se tratava do mesmo Silas, da mesma pessoa? Fiquei bem quieto e fui lá no quarto me certificar. O corredor que dava para o quarto dele era longo. A porta ficava do lado esquerdo do corredor como para quem vai. O coração pulou. Abri a porta e lá estava ele. Bem parecia que estava dormindo, do jeito que eu tinha visto ele quando cheguei à noite. Cheguei bem perto, olhei no rosto dele. Não parecia ser só sono. Toquei nele. Duro e frio como pedra. Informação confirmada. Morto.

Voltei para o saguão do restaurante, tinha mais gente. A coisa já tinha a dimensão de um acontecimento. A polícia chegou. Depois de algum tempo escutei uma voz de autoridade falando:

“Ele morreu ontem à noite.”

Aí eu abri o jogo. O porteiro confirmou a minha história.

“Então você passou a noite ao lado de um defunto”. Foi o que eu ouvi. Assim me pareceu também, porque de manhã ele estava na mesma posição da noite anterior, de repente me dei conta que realmente ele não havia se mexido durante a noite.

Naqueles tempos dormir com defunto era uma coisa natural. Não me abalei. Foi um evento inusitado na minha vida mas, como eu era ávido de aventuras, e como minha vida era cheia delas, lamentei a morte do Silas, tomei meu café e fui trabalhar. Hoje sim, toda vez que me lembro, me espanto e penso: “Se eu contar ninguém acredita, porque é muito surreal”. Só que é a pura verdade. Tenho um pouco de orgulho porque penso que poucas pessoas já passaram uma noite inteirinha deitada ao lado de um defunto, sem medo. Claro que eu não sabia disso. E justamente isso é o mais engraçado porque naquele dia pude constatar que às vezes não há diferença alguma entre o sono de um vivo e o sono de alguém que já não vive mais.